Um jeito de andar pela vida
Não faz muito tempo, vi você na rua. Era uma manhã de domingo, daquelas que tantas vezes passamos juntos. Vi você e notei, rindo sozinha, aquele andar de sempre: ereto, ponta dos pés tocando o solo primeiro, o calcanhar logo depois – um andar que fazia seu tronco ficar levemente inclinado para frente. Quando éramos pequenos eu tentava imitar: jogava meu corpo para frente, colocava a ponta de um pé no chão, iniciava a passada, deixava que o calcanhar tocasse levemente o solo e, na seqüência, liberava o outro pé para a passada que viria. Imitação perfeita. E eu adorava. Acho que aperfeiçoei esse andar a um grau máximo. Mas não lembro de ter exibido a cópia para outra pessoa. Talvez Adriana ou Nininha, não sei. Nem sei se você notava que, quando estávamos juntos, eu andava ligeiramente atrás para melhor assimilar a técnica daquela passada exótica. Você virava para me contar alguma coisa e eu imediatamente voltava a andar no meu ritmo.
Bem perto, bem longe
E como andávamos por essa cidade, lembra? Íamos ao clube, ao cinema e ao Frevo da Oscar Freire. Tudo a pé. Você, eu e sua passada única. A gente, que pouco sabia da vida, que achava que estaria, para sempre, protegida da chuva na marquise do clube. A gente que acreditava que seria possível gastar infinitas sextas feiras jogando tênis, comendo bauru quadradinho e tomando milk-shake de chocolate no Paulistano. A gente que achava que não havia muito mais além daquilo. Lembra? Na quadra, você tentava corrigir minha direita, mas não tinha jeito, ela ia para todos os lados. E eu me perguntava como conseguia imitar tão bem sua passada, mas não sua direita, sempre tão encaixada. Passava noites sonhando com o dia em que conseguiria ganhar pelo menos um set de você. Claro, eu ganhava um game ou outro, mas acho que você, tão elegante e gentil, deixava. Havia mais de um motivo para que eu imitasse você: você era meu primo mais velho, campeão brasileiro de squash, primeiro anista da Universidade Politécnica da USP – alguém em quem valia a pena se inspirar.
Naquela manhã de domingo, não faz muito tempo, vi você na rua, bem perto da sua casa – bem perto do clube, do Frevo, do cinema. Bem perto do que éramos. Não fossem os cabelos brancos, seria o mesmo cara de sempre. Sorri ao notar o andar; olhei para trás e lá estava nossa adolescência. A vida seguiu, casei, mudei, perdemos contato. Quando encontrava tio Carlos, perguntava de você e ele dizia que estava bem, vivendo no seu mundo, do seu jeito meio solitário. E aí, não faz tanto tempo, vi você na rua. Ia parar, juro que ia, mas o sinal abriu e os carros atrás de mim começaram a buzinar. Ou eu fiquei com medo que eles começassem a buzinar e engatei a marcha, não sei mais. O fato é que não fiz um sinal, não baixei o vidro, não gritei seu
nome, não apresentei você para minha mulher, que estava sentada ao meu lado. E foi apenas no domingo seguinte, quando Adriana me ligou para dizer que você tinha sido internado, que me dei conta. Aquele teria sido nosso último encontro.
A dança da vida
Como poderia saber que uma fatalidade levaria você? Nem havia diagnóstico, entende? Não faz sentido ir embora assim, de repente. Você saiu da festa sem saber que, durante vários anos, foi aquele com quem eu quis dançar. Aliás, aquele com quem dancei essa música às vezes tão doida da vida. Ou soube? Já é tarde agora. Mas quem vai dizer que nunca mais nos encontraremos? E, se acontecer, será que teremos a chance de jogar mais uma partida de tênis para você ver como minha direita, finalmente, melhorou? Nessa hora prometo mostrar a imitação que criei de você e contar que, depois de tudo e de todos, depois de tanto me inspirar em suas passadas, acabei encontrando uma maneira bastante própria de andar pela vida. Meio desengonçada às vezes, mas sempre muito minha. E tão confortável quanto aquelas longas tardes de sexta-feira no clube, quando tomávamos milk-shake, jogávamos tênis e éramos felizes.