Um brinde ao que vem depois

Parte de mim foi embora deste planeta e eu não sei o que fazer para ver sentido nas coisas

por Milly Lacombe em

 

Entro e vejo que o apartamento está mais ou menos como o meu estado de espírito: cacos pelo chão, paredes vindo abaixo, pó para todos os lados, e longe, muito longe, de voltar a ser minimamente parecido com o que era antes. Ao meu redor, os pintores, o encanador e o eletricista. Mas eu mal os vejo. Faz, aliás, semanas que não vejo outra coisa que não seja minha estúpida dor. “É necessário seguir”, dizem. Mas eu já não sei o que é mais necessário. Necessário seria, por exemplo, uma mãe jamais ter que enterrar seu filho. Penso, mas não falo. Tenho falado pouco. O pedreiro não veio outra vez, escuto. Não veio e não telefonou para avisar que não viria. Quando o homem finalmente atende o telefone, explica que está com dor de cabeça e por isso não poderá ir trabalhar, mas diz que tentou ligar para avisar. O que significa “tentar” ligar, pergunto. Ou liga-se, ou não se liga. Como é “tentar” ligar no século 21? Tentou ligar e o que aconteceu? O aparelho explodiu? Desmaiou tentando? Nada de caixa postal? Meu celular não acusa chamada perdida. Por favor, explica para esta alma dilacerada, seu pedreiro, o que é “tentar” ligar. O homem fica mudo, claro, e eu desligo sabendo que terei que procurar por outro. Mas que importância tem isso? Qual o fundamento de continuar a sair da cama pela manhã, escovar os dentes, lavar o rosto, vistoriar a obra do apartamento recém-comprado, organizar a mudança...? Uma parte de mim foi embora deste planeta no dia 4 de novembro, arrancada daqui, e eu simplesmente não estou sabendo o que fazer para voltar a ver sentido nas coisas mais simples, ou nas menos simples.

Em pedaços


Saio do apartamento largando para trás a bagunça, mas levando comigo os cacos. Na casa antiga, tudo agora está em caixas, coisas fora de lugar, nada mais como antes. Deixo minhas costas apoiadas na parede escorregarem até o chão, levo as mãos ao rosto e choro. Não tinha ideia de que era capaz de chorar tão abundantemente. Será que há um limite de água para sair de você em forma de tristeza? Não parece haver. E agora, como conseguir levantar daqui? Lá fora, o bem-te-vi e a maritaca continuam cantando porque certamente não sabem que ela não está mais aqui. E o Sol? Também não foi avisado porque insiste em brilhar. Obviamente não faria isso se soubesse do acidente. O vento talvez tenha sido informado, porque nesse fim de tarde de primavera faz um barulho enorme; som que aos meus ouvidos é quase um pranto. Mas o filho da vizinha, que corre e grita eufórico pela casa, não deve estar ligado; se estivesse, claro, não teria mais tanta alegria para extravasar. O que fazem, aliás, todas essas pessoas na rua, indo e vindo, falando animadamente em seus celulares? Será que não foram avisadas de que nada mais será como antes? Que tremenda ignorância continuar a sorrir, a cantar, a viver. Bando de gente chata.

Tudo junto


Não sei quanto tempo fico com a cabeça entre as pernas, completamente paralisada, deixando que a dor transborde. Quando consigo erguer os olhos, vejo que não estou sozinha. Tem ali minha mulher, linda como sempre, querendo me deixar deitar em seu colo, dizendo que me ama. Tem a Ciça querendo me fazer alguma coisa para comer. Tem a comunidade de amigas e irmãs, feita de mulheres que amam mulheres, todas me estendendo uma mão, dispostas a me tirar daquele buraco escuro, embora estejam elas mesmas mergulhadas em seu próprio oceano de sofrimento. Tem o Mauricio, que aparece sem avisar me trazendo um livro e me dando o ombro. Tem o Cury e a Paola, que não se cansam de telefonar e de visitar apenas para deixar claro que estão perto. Tem a Iza e a Dani, que me fazem entender que preciso ir ao Pacaembu ver o Corinthians campeão. Tem o Felipe, que agora vem todo fim de tarde sentar a meu lado no sofá. Tem o pessoal da revista – Regina, Renata, Ariane, Luciana, Nina –, essa família que frequento há tantos anos, que me oferece abraços, mimos, bilhetes e vibrações para que eu saia do chão. Estavam todos ali o tempo todo?

Sem saber muito bem como, fico de pé e consigo me mexer. Na janela, o bem-te-vi e a maritaca parecem cantar ainda mais alto. O fim de tarde ensolarado é desses em que ela sairia para correr e, depois, para tomar cerveja com amigos.

Olho em volta e vejo uma rede formada por aqueles que me amam e que agora estão unidos por mim. Entendo que posso me soltar, me permitir sentir até a última gota, porque essa rede não me deixará cair. Não sabia que havia no mundo tanta dor, mas também não sabia que havia tanto amor. Consigo chegar ao chuveiro, onde tomo um banho. Depois, coloco uma roupa bacana, arrumo o cabelo, passo alguma coisa no rosto e me permito sair. À mesa, com amigas que eram mais dela do que minhas, mas das quais agora me apropriei, me flagro rindo, e, depois, gargalhando. Estamos todas juntas. Vejo ela a meu lado, feliz por me sentir voltando. Era o que ela desejaria, afinal e acima de qualquer coisa. Como desapontá-la? Pego o copo e faço um brinde. A ela, ao gigantesco legado, a todos os que ficaram e agora terão que seguir. A tanto amor e à sabedoria de aceitar a dor. À vida e ao que vem depois.

A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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