Três em um

Marisa Monte, no Tom Brasil, Yamandú Costa e Dominguinhos, no Auditório do Ibirapuera. As críticas dos shows que agitaram São Paulo no último final de semana

por Redação em

Universo de Marisa

Quando despontou em meados dos anos 80, Marisa Monte era uma das grandes promessas da música brasileira. Quase 20 anos depois e com uma sólida carreira, a cantora encerra no Brasil uma turnê internacional iniciada em abril de 2006 e aplaudida em 17 países.

Por Nara Bianconi

Quando ouvi Marisa Monte pela primeira vez ainda era criança. Sentamos todos na sala da casa de um amigo de meu pai – ambos músicos – para ver uma entrevista com ela gravada em fita VHS. O ano era provavelmente 1989, e Marisa acabava de lançar seu primeiro álbum. Ela já havia conquistado o público carioca, além de grandes nomes como Nelson Motta, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Regina Casé. Seu talento já havia sido estampado nos principais jornais brasileiros, e a menina que pensara em ser cantora lírica ia se encontrando com um repertório que mesclava Tim Maia, Titãs, Mutantes, além de algumas pérolas da música internacional.

Depois veio o disco Mais, em 1991, e a consagração nacional. Não havia quem não cantarolasse “Beija Eu”. Uma regravação de Pixinguinha virou tema de novela, e Marisa deixou de ser cantora revelação para ganhar status de ídolo. No CD seguinte, Verde Anil Amarelo Cor de Rosa e Carvão, de 1994, abriu espaço para algumas influências do samba e começou sua parceria com os futuros tribalistas, Arnaldo Antunes e Carlinhos Brown. Vieram então Barulhinho Bom, em 1996, Memórias, Crônicas e Declarações de Amor, em 2000, e Tribalistas, em 2002.

Em 2006, nasceram por fim os dois últimos álbuns: Universo ao Meu Redor, recheado de bons sambas, e Infinito Particular, só com composições de Marisa e parceiros. Apesar de terem personalidades e histórias distintas, foi a mescla de ambos que deu origem à mais madura turnê da cantora – com direção musical assinada por ela mesma –, Universo Particular. Depois de ter percorrido mais de 24 cidades em 17 países de quatro continentes e ter sido aplaudida por mais de 300 mil pessoas, Marisa volta ao Brasil para encerrar mais uma etapa de sua carreira.

No último dia 10, a moça subiu ao palco do Tom Brasil para fazer a primeira apresentação de uma série limitada, antes de terminar a turnê. Mesmo já tendo passado por Sampa no ano passado, os ingressos esgotaram logo nos primeiros dias e shows extras foram definidos. Quando as cortinas abriram, soaram também os primeiros acordes da música “Infinito Particular”. Tudo no mais completo breu. Só pouco antes de terminar a canção é que um foco de luz localizou Marisa no alto do palco, sentada, tocando uquelele. Então vieram as palmas.

Cubos iluminados compuseram a cenografia e moviam-se o tempo todo fazendo alusão a uma cidade ou um universo próprio, particular. Apesar de belíssima, a cenografia não foi, definitivamente, desenhada para o espaço do Tom Brasil. As cadeiras laterais tiveram a visão bastante prejudicada durante quase todo o show. Uma pena. Marisa seguiu cantando, encantando e tocando também guitarra, gaita e kalimba. Na frente do palco, somando a violões, cavaco, baixo, piano e bateria, havia um quarteto composto de celo, violino, trompete e fagote, que deram tom orquestral para o show.

Além das músicas novas, o espetáculo seguiu com grandes sucessos, como “Segue o Seco”, “Beija Eu”, “Dança da Solidão” e “Eu Não Sou da Sua Rua”. As canções dos Tribalistas, que não ganharam turnê própria, também foram evidenciadas. Marisa interagiu o tempo todo com a platéia, que retribuiu histérica gritando coisas como linda e gostosa. Ela riu sem graça e disse brincando: “Por que ninguém gritou tímida? É isso que sou: tímida!”.

Quando se despediu por fim, ninguém arredou o pé. E então ela voltou soberana dando de lambuja mais três músicas para o público. A última, “Amor I Love You”, cantou a capella e saiu de fininho, pouco antes do refrão, enquanto em coro a platéia continuou cantando a todo pulmão. Emocionante!

Não há dúvida que essa turnê é pop e que fã que é fã ficou sentindo falta de belíssimas canções como “Satisfeito” e “Quatro Paredes”. Mas uma coisa é incontestável: Marisa é o grande nome da música brasileira desta geração. Não há quem não admire seu trabalho ou saiba cantar suas músicas. Ela é genuinamente popular. E ainda bem que segue Na Estrada enchendo de alegria nossos corações.


Dominguinhos, Yamandú e o resgate da gentileza

Gentileza. Palavra bonita, de natureza sapiente e forte. Há muito esquecida e perdida em algum canto escuro de algum lugar próprio para vocábulos que, apesar da nobreza, acabam não passando disso. Prática encubada

Por Mariana Gomes

Foi no palco do auditório do Parque do Ibirapuera que, no fim de semana dos dias 10, 11 e 12 de agosto, aconteceu algo literalmente espetacular. Como se um super-herói, ou dois – daqueles de histórias infantis, nos quais só se acredita mesmo quando criança –, surgisse e resgatasse a gentileza das trevas das palavras perdidas em seus sentidos, que suplicam pela inserção em algum contexto. Foram os primeiros shows de divulgação do CD instrumental Yamandú + Dominguinhos (2007), do produtor José Milton, lançado pela gravadora Biscoito Fino. A parceria surgiu por iniciativa do violonista Yamandú Costa: “Eu conheci o trabalho dele aos 16 anos de idade, lá no Sul. Posso dizer que Dominguinhos foi uma grande fonte de inspiração desde então”, relembra entusiasmado.

No púlpito do teatro, a gentileza surgiu. O violonista gaúcho e o mestre da sanfona nordestina a reproduziram em sons, imagens e gestos, entrelaçando as raízes culturais dos extremos brasileiros. Na complexidade do repertório e na simplicidade do tratamento, eles encantaram dos simples aos mais exigentes ouvidos, com versões de clássicos da música popular brasileira como “João e Maria”, de Sivuca e Chico Buarque, “Estrada do Sol”, de Tom Jobim e Dolores Duran, “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, dentre outros. Essas foram algumas das jóias lapidadas pelos músicos, que não abandonaram no show suas facetas autorais como em “Xote Miudinho”, de Dominguinhos, e “Bagualito”, de Yamandú.

Quem ali estava presenciou algo que no cotidiano do se-correr-o-bicho-pega-e-se-ficar-o-bicho-come é pouco provável encontrar. Dominguinhos, um artífice dotado de imensurável sabedoria e doçura, e Yamandú, um aprendiz – com semblante e, acima de tudo, humildade que em algumas vezes o confundiam com o mestre – que baixava a voz para escutar o parceiro tocar seu acordeom e contar seus causos antigos. “Na época de Refazenda, eu fazia shows com Gil. Eita homem que gostava de falar! Falava e cantava muito, como hoje. Os shows duravam umas três horas. Ele cantando e eu em pé, segurando e tocando a bicha de 13 quilos, quase pedindo pelo amor de Deus de tanto cansaço. E, no dia seguinte, era tudo de novo”, proseava o sanfoneiro com a platéia maravilhada, que não continha os risos ao final de cada historieta.

Existia ali uma sintonia que ia além da sincronia harmoniosa de instrumentos e instrumentistas: presenciava-se uma aula do conviver, ministrada a partir de respeito mútuo, papéis demarcados e bem executados. Essas coisas que parecem hoje relegadas a um último plano. É como se os músicos metaforizassem a possibilidade de pedir licença a todos os elementos que abafam o ritmo, a beleza e a alegria ainda presentes no dia-a-dia.

Práticas desencubadas. Definitivamente, um espetáculo de gentilezas.

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