Trabalho desinteressado. Será mesmo possível?

Sei que ser monja no topo de uma montanha é relativamente fácil. Mas ser verdadeiramente eu mesma, no grande baile de máscaras que é o dia-a-dia do meu trabalho numa multinacional, é, no mínimo, a iluminação em si

por Redação em

 

por: Patricia Varella


Setembro de 2002. Neyyar Dam, Estado de Kerala, Índia. Acordo às 5 da manhã diariamente. A rotina imposta é irredutível. Mantras, meditação, estudo das escrituras, práticas de hatha ioga. Meu karma ioga é recolher o lixo dos dormitórios, que abrigam dezenas de pessoas separadas por sexo. Depois do recolhimento e limpeza dos banheiros, enterro tudo na floresta. Posso escutar os leões. A placa de "cuidado com os crocodilos" nas proximidades do lago. "Fazer o que deve ser feito", Buda ensinou.

Fevereiro de 2006. Serra da Cantareira, São Paulo, Brasil. Acordo às 4h30 da manhã diariamente. A rotina imposta é irredutível. Kriya ioga, meditação, pranayama, palestras que são verdadeiros satsangas (em sânscrito, "na companhia do sábio"). Meu karma ioga é limpar o banheiro do quarto que divido silenciosamente com outra mulher. Faço o que deve ser feito sem drama nem choro. Posso escutar os macacos. Os pensamentos não tão agitados cedem espaço para a contemplação.

Março de 2007. São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil. Acordo diariamente às 5 da manhã. A rotina imposta é flexível, mas sou irredutível. Meu karma ioga, dessa vez, é gerenciar projetos e operações em uma imensa multinacional. Falho deliberadamente.


Faça o que deve ser feito. E só


Karma ioga é uma das iogas mais difundidas porque engloba o que vivemos regularmente. Trabalho livre da expectativa de resultados, cada ação é oferecida ao divino. Os mestres elucidam que, ainda assim, a intenção de determinada meta obviamente existe. Quando você pressiona o interruptor elétrico tem a intenção de ligar uma luz. O que as escrituras diriam desse exemplo hipotético é que o fato de a lâmpada acender ou não está desvinculado dos nossos atos. Dessa perspectiva, somente a ação nos cabe. A reação é determinada por outros fatores diferentes de nossos intuitos.


Na empresa em que trabalho, faço do suposto karma ioga um trabalho simplesmente. Cheio de cobranças em busca de realizações que impreterivelmente não podem me fazer feliz. Nada que tem duração pode ostentar felicidade atemporal. Longe de estar desinteressada pelos frutos das ações, avalio metodicamente as supostas conseqüências dos meus atos. Não faço alusão à irresponsabilidade, meramente atesto que o trabalho poderia ser menos estressante. Respiro fundo. Admito, constrangida, que eu poderia ser menos estressada, afinal, o mundo é a partir dos meus olhos! Por que fazer o que deve ser feito é repentinamente tão difícil? Hoje eu sei que ser monja no topo de uma montanha é relativamente fácil, mas ser verdadeiramente eu mesma, no grande baile de máscaras que é o dia-a-dia na grande cidade e no trabalho, é, no mínimo, a iluminação em si.

Ao longo dos séculos os gurus têm oferecido especial ênfase ao ser real que habita cada um de nós. E que não é diferente de quem somos. Swami Dayananda, maior autoridade em Advaita Vedanta (estudo não dualista das escrituras hindus) na atualidade, diz que estamos em uma peça teatral encenando, com convencimento pleno de que somos o personagem. Entretanto, o empenho deve ser canalizado na realização do ator em vez da encenação da trama. O ator tem total consciência do script. Por isso, encara aquilo como mais uma tarefa que deve ser feita sem identificação com o personagem. Uma magnífica teoria.

Infelizmente não é assim que me comporto. Em momentos serenos, como os que vivi ao longo dos anos estudando as escrituras, tenho incontestável consciência da atriz e faço o que deve ser feito. Mas no dia-a-dia me surpreendo com emoções negativas sobre algo que vivo no enredo, ou seja, nem sequer lembro da bendita atriz. Posso jurar que o que vivo é a realidade quando, na verdade, estou ligada à maya (palavra em sânscrito que retrata a ilusão). Da mesma maneira que a realidade do sonho existe para o sonhador enquanto sonha, maya existe para nós. Quem sonha sente dor, desespero, alegria, dependendo do contexto que está exposto. Já quem dorme está ileso. Da mesma forma, segundo o vedanta, eu sonho que sou a Patricia, por exemplo. A realização do sonhador é o "leão do sonho". Despertamos.

São 9 da noite de um dia muito bem vivido. Mesmo assim, em minha sã consciência, escolheria não haver vivenciado certas passagens, mas não sou eu quem escrevo o mito. Lembro do discípulo devoto que dizia "se Deus me trouxe aqui, devo satisfazer seu desejo". Aparentemente atuei onde fui convocada, resistindo às fugas mil que arquitetei na minha mente. "Mente que mente." Durmo um pouco mais acordada hoje. Quem sabe noite destas eu vá para a cama desperta por fim. Enquanto isto, perambulo o sonho vivendo novas aventuras, à procura do leão, e procuro encarar minhas ações com o entendimento do karma ioga.

Resta a dúvida se conseguirei fazer o que deve ser feito quando desmotivada pela realidade transitória de maya. O que conquisto diariamente com a prática de ioga - não só na sala, mas na vida - não é página virada. Pelo contrário. São pontos explícitos para vigilância. Cada momento a realidade se apresenta difundida na ilusão. É como olhar uma janela de vidro molhada. Depende da nossa atenção focalizar as gotas ou a paisagem. Então, com empolgação transparente somente a quem me olha nos olhos, da janela do meu mundo por fim vislumbro o leão. Sei que um dia nos encontraremos.

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