Cadeia Alimentar

Tpm abriu as sacolas e as histórias de cinco mulheres que, um dia por semana, almoçam no cárcere

por Natacha Cortêz em

Em uma das duas barracas de comida que ficam ao lado da entrada do Cadeião de Pinheiros, vendem-se bolos, pudim, água e refrigerante. O local funciona também como guarda-volumes: as visitantes podem deixar a bolsa por R$4 e o carrinho de feira por R$ 5. O aluguel de uma peça de roupa na cor exigida pelo regulamento sai por R$ 6 - Crédito: Marcos Vilas Boas

Centro de detenção provisória Vicente Luzan da Silva, conhecido como Cadeião de Pinheiros, 5h30 da manhã. Cerca de 150 pessoas, quase todas mulheres, esperam em uma desordenada fila. Elas vestem uma espécie de uniforme exigido pela administração do lugar. Roupas de algodão em cores chamativas (magenta, roxo, amarelo ou lilas) que servem para identificar os vistantes. Ainda carregam sacolas grandes lotadas de potes. Estamos na Avenida das Nações Unidas, região central de São Paulo. Do lado de dentro do muro alto estão homens em regime fechado à espera de transferência para outras unidades. É sábado, dia de visita na ala B.

A entrada acontece entre 8h e 13h e os visitantes ficam até 16h. Pontualmente. Mas a fila começa a ser formar a partir das 4h. É simples: quem chega primeiro entra antes e acaba ficando mais tempo. Nas sacolas, o almoço e o jantar do dia. Refeição que farão junto com os parentes presos. É permitido apenas 4 recipientes de comida, 3 de alimentação salgada e 1 de doce. Pão de forma, guardanapos de papel, pratos plásticos e cigarro também entram. Mas nem toda comida vale. Segundo os visitantes, arroz, macarrão, carnes e legumes dificilmente são barrados. Receitas com muito molho não passam. Quanto aos doces, pode pudim e bolo sem recheio. Se tiver cobertura, precisa vir separada – alimentos com texturas que possam disfarçar objetos “infiltrados” são proibidos.

Tpm abriu as sacolas e as histórias de seis mulheres que, um dia por semana, almoçam no cárcere.

Iracema dos Santos
38 anos, estudante de serviço social

"O pessoal que trabalha na prisão acha que o visitante é uma extensão do criminoso, que compactua com a pessoa que cometeu o delito. Não te olham como a mãe, como a família"

Iracema veio ver o filho – ela prefere não dizer o nome dele. Preso por sequestro, ele é réu reincidente. Já tinha sido detido pouco tempo atrás pelo mesmo crime. Hoje, o rapaz tem 22 anos. Quando foi preso pela primeira vez tinha 18.
Faz um mês que ele está no CDP Pinheiros e esta é a primeira visita de Iracema ao local. Ela não sabia exatamente o que podia e o que não podia trazer – cada prisão tem suas regras e elas dependem do diretor.

“Quando você vem fazer seu cadastro, não recebe orientações. Ninguém te explica nada sobre a visita. Você fica sabendo como as coisas funcionam aqui na fila. O pessoal que trabalha na prisão acha que o visitante é uma extensão do criminoso, que compactua com a pessoa que cometeu o delito. Não te olham como a mãe, como a família. Somos tratados sem o mínimo respeito”, fala.

Para o almoço, ela trouxe macarrão à bolonhesa e brócolis, “porque sei que ele gosta”, frango ao molho de tomate e bolo. “A gente acha que o Estado banca o preso. Mentira. Se a gente não comprar produtos de higiene básica e de alimentação, eles ficam sem. Da outra vez que meu filho ficou preso, acumulei uma dívida de R$ 8 mil em jumbo (espécie de cesta básica semanal com alimentos perecíveis e produtos de higiene que os detentos recebem dos familiares – ela pode ser montada por conta própria e deixada na portaria do centro de detenção ou encomendada no site jumbocdp.blogspot.com)”

Na sacola:

Crédito: Marcos Vilas Boas

Luciana dos Santos
35 anos, trabalha na administração de uma autoescola

Crédito: Marcos Vilas Boas

Luciana vem todos os sábados, de Guarulhos, visitar Admilson, o marido. O casal está junto há dez anos, e ele está preso há dois. “Eu nunca tinha visitado ninguém na cadeia antes. Na primeira vez, me assustei com a demora. É preciso chegar cedo para conseguir entrar ao meio-dia”, diz. “Como não tem outro jeito, venho. E toda semana, sem falta.”

 “Eu nunca tinha visitado ninguém na cadeia antes. Na primeira vez, me assustei com a demora. É preciso chegar cedo para conseguir entrar ao meio-dia”

Luciana e Admilson têm um filho, ickelme, de 9 anos. O pai, que deve cumprir uma década de pena por roubo de caminhão, faz falta. “O menino ainda não tem um entendimento total do que significa, mas sente falta do pai, reclama quando tem atividades na escola e o Admilson não vai”, conta.

Para diminuir a saudade, Luciana traz o filho junto nas visitas, a menos que esteja chovendo, como aconteceu no dia em que a encontramos. “Se molhar o pé ou a roupa, eles não deixam entrar. Com criança fica difícil se proteger da chuva, aí nesses dias venho só.” Para o almoço, ela trouxe frango assado, arroz, um bolo de laranja e Coca-Cola. Luciana diz que não costuma levar muita coisa porque as regras do que não pode são restritas, fora o peso que teria que carregar no caminho de Guarulhos até o centro de detenção.

Na sacola:

Crédito: Marcos Vilas Boas

Joana Darc
42 anos, funcionária pública em uma creche

Crédito: Marcos Vilas Boas

Joana é viúva e mãe de três filhos. O mais velho, que ela não quis revelar o nome, tem 24 anos e está detido há oito meses pelo crime de associação ao tráfico de drogas. Segundo a mãe, antes de ser preso, ele vivia uma vida tranquila e trabalhava como atendente em um McDonald’s.

A prisão do filho desestruturou Joana, que conta sua história com lágrimas nos olhos. Na fila, ela deve entrar tarde, “depois das 11 horas”. O motivo? Não consegue chegar cedo por causa dos outros filhos, precisa deixar o almoço dos meninos pronto.

“Semana passada trouxe frutas, mas barraram o melão. Disseram: ‘melão é cítrico’. Maçã com casca também não deixam entrar. Mas é tudo implicância, fazem de propósito para tratar mal mesmo”

Para Joana, entrar na cadeia é um “esforço sem tamanho”. A revista vexatória é um dos piores momentos. “Encaro como se estivesse indo a um ginecologista. Se eu não fizer, meu filho fica sem visita. A situação lá dentro é humilhante, tanto pro preso quanto pra quem visita. É um limbo”, diz. [Em julho de 2014, a Alesp – Assembleia Legislativa de São Paulo – aprovou a lei 15.552/14, que proíbe a revista vexatória no estado. Promulgada pelo governador Geraldo Alckmin em agosto de 2014, a revista íntima com atos abusivos como agachamentos e exames clínicos deveria ser extinta do sistema prisional de São Paulo no prazo de 180 dias – como alternativa, scanners e detectores de metais seriam adotados. No entanto, denúncias mostram que a prática continua sendo executada.]
Ela conta das limitações quanto à comida. “Semana passada trouxe frutas, mas barraram o melão. Disseram: ‘melão é cítrico’. Maçã com casca também não deixam entrar. Mas é tudo implicância, fazem de propósito para tratar mal mesmo.”

Desta vez, ela comprou tubaína porque o filho gosta, salada de legumes com ovo de codorna, arroz, carne assada e macarrão. “Comida de mãe”, diz. Além dos pratos salgados, ela trouxe bolo e pão. “Faço tudo isso porque é meu filho, nunca o abandonaria. Ele nunca mais vai voltar pra esse lugar, me prometeu. Quem vai preso e retorna não tem amor por si mesmo.”

Na sacola:

Crédito: Marcos Vilas Boas

Ana Carolina de Melo Modesto, 33 anos, cabeleireira & Thaís Sinara Pires, 20 anos, estudante

Crédito: Marcos Vilas Boas

Ana e Thaís só aceitaram falar e serem fotografadas se aparecessem juntas. Mesmo assim, Ana não quis mostrar o rosto. “As pessoas confundem as coisas. Acham que, porque você vem visitar preso, deveria estar presa também”, justifica.

As duas são amigas e andavam de mãos dadas na fila. Elas se conheceram dois meses atrás, num dia de visita e, a partir daí, não desgrudaram mais. Se dão tão bem que chegam a completar a frase uma da outra. Vão sempre juntas visitar os maridos, presos por furto.

Ana está com o companheiro há seis anos e com ele tem um menino de 1 ano. O parceiro tem 22 passagens pela polícia, e isso faz dela uma frequentadora de cadeias. “O cara vai preso e a gente acaba virando uma espécie de presa também”, diz. Para ela, a revista vexatória é o pior momento da visita. “Abaixamos três vezes de frente e três de costas. Ficamos sem roupa nenhuma, nem calcinha”, diz. “Tem que abrir a periquita e abaixar. Me sinto humilhada.”

Para o marido, Thaís levou macarrão com carne moída, além de salada de batata. Mas quem prepara o almoço não é ela, e sim a sogra. A estudante não se sente à vontade para conversar, tem medo e vergonha de falar sobre a história do companheiro, com quem está desde os 17 anos. “As pessoas te olham diferente quando sabem que você visita alguém aqui”, sussura, enquanto alerta que precisamos ser rápidos – a fila está andando. Quando estávamos conversando, um grupo da Assembleia de Deus oferece oração pra ela, que responde rapidamente: “Já rezo muito, hoje não quero”.

Na sacola:

Crédito: Marcos Vilas Boas

Na sacola:

Crédito: Marcos Vilas Boas

Do lado de dentro

Luiz Alberto Mendes, escritor e colunista da Trip, ficou mais de 30 anos preso por roubo e homicídio. Aqui, ele conta a importância do dia de visita

“Os dias de visita eram os mais importantes na prisão. Eu já levantava feliz, como naquela história do Pequeno Príncipe: ‘Se vens às 4 horas, às 3 horas já estarei sendo feliz’.

Quanto aos visitantes, tive fases. Na maior parte das vezes, ia minha mãe, e nesse dia ela não queria saber de ninguém me visitando a não ser ela. No mais, ia a namorada. O que levavam de mais importante para mim, com certeza, eram elas mesmas. Além de suas presenças, perguntavam o que eu tinha vontade de comer. Eu pedia carne assada, torta, pudim, bolo, macarrão ao alho e óleo e frango assado. Ainda levavam o material de higiene que é permitido entrar na cadeia. Papel higiênico, por exemplo.

O que me traziam era como se fosse uma parte delas. Eu chegava a acariciar as coisas e me sentir acariciado com cada item. Mas nem tudo entrava na prisão. Um monte de coisa era barrada, e isso dependia muito do momento que eu vivia lá dentro. Tinha dias em que não entrava nada, nem açúcar. E outros em que podia quase tudo. Isso servia para a cesta da visita e para o Jumbo – uma caixa com comida não perecível e produtos de higiene que a gente podia receber uma vez na semana e era entregue por amigos e familiares na portaria da cadeia.
Nos dois últimos anos, eu recebia o Jumbo da Trip pelo correio, me enviavam livros, revistas e material de escrita. Eu adorava. Hoje, eu mesmo mando um assim para amigos presos.” 

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