Todas as mulheres em mel
Com minha sobrinha, coisas simples podem desencadear diálogos sem fim
Mel abriu os olhos, mas continuou deitada. Desconfiada, deu uma rápida sapecada em quem estava a sua volta e, sem tirar a chupeta da boca ou nem sequer mexer um músculo, bufou para deixar claro que estava de mau humor. Mel precisa de seus cochilos vespertinos, mas parece não gostar de acordar e se perceber cercada de pessoas: Bruna, a irmã de 6 anos, Larissa e Carolina – as primas gêmeas de 1 ano e meio –, Estela, a prima de 11 anos, minha mulher e eu e, claro, Nonna, que nunca falta. “O que foi, Mel?”, perguntou Nonna, mais para deixar registrado que tinha notado o bico. “Não gosto quando o dia está acabando”, decretou, deitada de lado, abraçada a uma Minnie de pelúcia e voltando a fechar os olhos. “Ah, nem eu”, respondeu Nonna, mais para criar cumplicidade. Mel colou Minnie um pouco mais em seu corpo e bufou outra vez. “Podemos pedir para a noite esperar um pouco para chegar”, disse eu, do outro lado do quarto de brinquedos, onde Mel estava tirando sua soneca. “Não pede! Não pede!”, respondeu ela, birrenta e mais para deixar claro que minha interferência, mesmo para demonstrar parceria, não era bem- vinda. Mel é temperamental. Tem dias que passa por mim e me olha como se eu fosse um tomate estragado na barraca da feira. Tem outros que me vê e sorri de lado, marota, mas deixando claro reconhecer e gostar da presença da tia que mora bem perto e aparece sem avisar, normalmente para filar um rango. Esses são os bons dias.
Siga a mestra
Paulo e Antonio, os irmãos adolescentes, tentam aprender a lidar com os humores de Mel. Outro dia, depois do almoço dominical, Antonio pegou o violão e começou a dedilhar. Mel, que ziguezagueava pela sala arrastando uma fraldinha que ela, quando está procurando um bom canto para tirar a soneca, não larga, disse muito seriamente e achando que falava para ele e mais ninguém escutar: “Se você continuar com esse barulho vou pegar esse violão e dar na sua cabeça”. Antonio, quase 1,90 metro, levantou os olhos e viu aquele ser humano de alguns centímetros, que existe há apenas três verões, com um bico enorme a desafiá-lo. Movido pela sabedoria de um monge, colocou o violão de lado e foi repetir a sobremesa.
Outro dia, quando Paulo, o primogênito, se abaixou para dar um abraço e beijo de bom dia, Mel fez bico e disse: “Sai daqui”. Paulo não entendeu e exigiu uma explicação para tamanho desdém matinal. “Você empurrou a Bruna, e isso não se faz.” Paulo ficou pensando quando poderia ter empurrado a irmã e finalmente lembrou que, três dias antes, havia dado alguns passos para trás e, sem ver Bruna parada ali, acabou derrubando-a. Nesse dia, Mel, na porta do quarto, espreitava o ocorrido e, sem Paulo saber, iniciava julgamento seguido de condenação. Não serviu como atenuante o fato de o irmão ter levantado Bruna do chão, segurado-a no colo, dado vários beijos e implorado desculpas: estava condenado sumariamente e iria cumprir pena.
Tão pequena
Mel nasceu em janeiro de 2008, a quarta filha que veio ao mundo para, entre muitas outras coisas, fazer companhia a Bruna, já que os dois mais velhos tinham pelo menos uma década a mais. A parceria foi rapidamente estabelecida, assim como a relação de poder: Mel diz para onde vão e o que farão. Bruna, menos temperamental desde a chegada da irmã, acaba colando na dela. Não demorou para dominarem a casa e instalarem ali um forte sistema de comando. Os pais, acreditando que criar as duas seria mais ou menos como criar os dois primeiros, não estavam preparados para as incontáveis variações de humor – jamais vistas nos meninos. As coisas mais simples podem desencadear melancolias profundas e diálogos sem fim – desde a cor de uma blusa até a insistência do Sol em continuar, dia após dia, a se pôr.
Diante dos exemplos diários, Paulo e Antonio vão fazendo anotações mentais, na juvenil esperança de que, um dia, conseguirão decodificar o gênero – ou pelo menos saber quando é prudente não tentar um beijo de bom dia. Não vou ser eu a avisá-los de que jamais chegarão lá. Mas, há algumas semanas, durante um almoço, tentei explicar a eles que a intensidade das irmãs era apenas um dos sinais da evolução das espécies. “Se vocês acreditam na teoria de Darwin, têm que acreditar que o sexo que não desenvolve pelo no rosto é o mais evoluído dos dois.” Sem argumento para derrubar minha tese, e dentro da simplicidade de seus mundos masculinos, voltaram a mastigar.
Ontem, no carro a caminho da escolinha, Mel, acomodada no assento traseiro e junto à janela, gastava o tempo olhando o mundo lá fora. De repente, com o nariz colado ao vidro, deixou escapar para ninguém em particular: “Mas eu ainda sou tão pequena...”. Não sabemos se aquilo era um pranto de inconformismo diante de tanta intensidade, um lamento pelas inúmeras coisas que já quer fazer e não pode ou apenas a constatação de um fato. Pouco importa. Em Mel estão todas as mulheres do mundo – determinadas, intensas, inconformadas, perturbadas, belas, poderosas, doces, confiantes. Os homens que me perdoem, mas ser Mel é fundamental.
A carioca Milly Lacombe, 44 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com