Toda a dor e a alegria de um homem

Quando o conheci, detestei de cara. Ainda que se tratasse de meu irmão

por Milly Lacombe em

O nascimento de meu irmão alterou nossas vidas da forma como uma guerra nuclear talvez não tivesse sido capaz. Único homem na prole de quatro, caçula de mãe siciliana e pai desesperado por um outro macho na casa, o cara chegou com pompa de rei e já se sabendo perfeito.

Enquanto eu e minhas irmãs nos amontoávamos em um quarto, ele tinha o dele. Com aparelho de TV. Quando queríamos ver algum programa, era preciso negociar com o príncipe. Como ele passava as tardes assistindo a um vídeo chamado As Faces da Morte, um troço que, dizia ele, retratava cenas reais de pessoas sendo trucidadas em acidentes, não frequentávamos muito aquele quarto. Silenciosamente, eu nutria a esperança de que a obsessão pelas cenas sanguinárias indicasse que meu irmão seria um assassino em série. E, nesse caso, quando a verdadeira face daquele pequeno monstro viesse à tona, ficaria um pouco difícil minha mãe conseguir elogiar, paparicar e bajular tanto.

Como eu era a mais velha e ele o caçula, havia ali uma boa diferença de idade. Assim, se não contarmos as vezes que o convidei para ir jogar bola na garagem apenas para dar-lhe umas caneladas, não havia muita ligação entre a gente. Ele era, afinal, tudo o que eu achava que queria ser naquela época: homem. E, só por isso, merecia meu desprezo.

Mas o moleque cresceu e foi se chegando. Era o único da casa que acordava tarde como eu, o único que gostava de praticar esportes, de frequentar estádios e, por alguns anos, enquanto não tinha idade para sair à noite, foi minha companhia às sextas e aos sábados. Eu, que nunca gostei de balada ou da rua, encontrava na presença dele a parceria ideal. Enquanto minhas irmãs curtiam alucinadamente a adolescência, ele e eu víamos filmes na TV, fazíamos calda quente de chocolate para o sorvete, pedíamos pizzas.

Ficamos ainda mais próximos quando ele começou a treinar triathlon comigo. Era o único maluco da casa que topava acordar às quatro e meia da manhã pra ir pedalar. E, evidentemente, assim que eu percebi que não queria ser homem, queria apenas namorar meninas, toda a minha raiva deixou lugar para que eu o visse apenas como o irmão caçula, o pequenino da casa, a pessoa que mais se parecia comigo em todo o planeta. Assim, quando aos 16 anos comecei a me relacionar com outras mulheres, o moleque entrou definitivamente em minha vida para se tornar meu melhor amigo.

Ritual de passagem
Quando cheguei ao hospital, ele ainda não estava lá. Tinha ido cuidar da papelada, me disseram. “Mas por que é ele quem tem que fazer isso?”, perguntei deixando que minha voz revelasse uma certa raiva. “Porque ele era o pai, tem que assinar o óbito”, disse minha irmã. E eu, sempre a mais fraca e mole da casa, me peguei levemente aliviada que meu irmão não estivesse ali. Não sabia como acabaria reagindo quando o visse. Minha cunhada tinha acabado de dar à luz Isabela, que, prematura, sobreviveu poucas horas. Meu irmão, cirurgião, era o único que tinha segurado Isabela no colo. Depois, mesmo encharcado de dor, teve que lidar com a burocracia: certidões de nascimento e óbito, caixão, enterro. E eu só conseguia pensar que não era justo que ele, aquele cara tão pequeno que me pedia para alcançar o sorvete para ele no freezer, estivesse passando por uma dor tão adulta.

Tinha visto meu irmão chorar quando meu pai morreu e nunca mais nem antes nem depois disso. Mas, nesse dia, quando nos encontramos, ele colocou a cabeça em meu ombro e chorou como uma criança. Ficamos assim por muito tempo e minha vontade era nunca mais deixar que ele voltasse para a crueldade do mundo. Mas ele voltou, cuidou de dar a Isabela um ritual de passagem e de nutrir como pôde aquela dor.

Faz seis meses meu irmão me ligou para dizer que Carolina e Larissa chegariam em março ou abril. Como se não bastasse ter passado a vida cercado por minha mãe, Adriana, Nininha e por mim, o cara agora vai morar em uma casa com outras três. Trata-se, é evidente, de um homem de sorte – e ele sabe disso.

Isabela nunca será esquecida nem substituída. Porque não há substituto nesta vida para um grande amor. Aliás, não há nesta vida nada a não ser amor, dor, continuidade e memória. Que Carolina e Larissa sejam bem-vindas e saibam desfrutar do tremendo homem que vai recebê-las na chegada, e, num sábado qualquer de verão, alcançar para elas o sorvete no freezer e, depois, jogar em cima dele aquela calda quente de chocolate que inventamos juntos.

 

 

A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

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