Tita Tavares

Apenas alguns centímetros e um til separam a surfista de ser um titã

por Millos Kaiser em

Ela é cearense e baixinha. Está doente e há sete anos sem patrocínio. Mas foi a primeira surfista a ganhar um 10 num campeonato mundial, é tetracampeã brasileira e quarta melhor do mundo. Apenas alguns centímetros e um til separam Tita Tavares de ser um titã

 

São oito da manhã de uma quarta-feira na comunidade do Titanzinho. Música evangélica bombando no bar. Motos passam com três, até quatro pessoas em cima – ninguém de capacete. Vira e mexe, um odor de chorume invade as narinas e é preciso desviar do esgoto que cruza o caminho. Gigantescos cata-ventos de energia eólica contrastam com casas simples e barracos improvisados. Um cenário perfeito para uma versão tropical de Mad Max.

“Que caos”, você pensa, para em seguida mudar de ideia. Primeiro, porque não há uma pessoa que passe por você sem cumprimentar com um sorriso. Segundo, porque o Titanzinho, situado no extremo nordeste do litoral de Fortaleza, abriga uma paradisíaca praia homônima (reza a lenda que o nome veio de um navio chamado Titã, que naufragou perto do continente), de ondas curtas e tubulares. Delas saíram grandes talentos do surf brasileiro, como Pablo Paulino, Fábio Silva e André Silva. Mas o surfista mais notório do pico é uma surfista: Tita Tavares, 36 anos.

É ela que surge pequena no horizonte, carregando uma prancha debaixo do braço e uma sacola de plástico. Vem andando em nossa direção, não sem antes dar oi para todo mundo que encontra. Quando finalmente chega aonde estamos, continua pequena. Mas, com um metro e meio de altura, Tita está apenas a alguns centímetros e um til de distância de ser um verdadeiro titã: é tetracampeã brasileira, chegou a ocupar a quarta posição no ranking das melhores do mundo e, em 1996, foi a primeira mulher a arrancar um 10 unânime dos juízes do WQS (divisão que dá acesso à elite do surf mundial), do qual é bicampeã.

Já faz mais de um ano, no entanto, que seu nome não é anunciado nos megafones dos campeonatos de surf (o ano de 2006 foi o último que ela competiu o mundial e ocupava o 5º lugar no ranking). A culpa é de um hipertireoidismo, doença caracterizada pela hiperfunção da glândula tireoide, cujos sintomas incluem taquicardia, perda de peso, nervosismo e tremores, descoberto em outubro de 2011, durante uma etapa do Brasil Surf Pro, no Rio de Janeiro.“Brother, apaguei no meio da bateria. Fui parar, inconsciente, na areia. Quase morri. Eu andava fraca, sem energia, com dor de cabeça, mas não queria ir ao médico. Sempre tive medo”, diz.

 

“Ajudei minha família, paguei inscrição e viagem de muito surfista daqui. Uma hora a grana acabou”

 

Desde então, por recomendação médica, ela só pode surfar uma hora por dia. “Mas sempre surfo duas”, confessa. E tem de ficar de olho na alimentação – chegou a pesar 39 quilos, no lugar dos habituais 47. Uma vez por semana, faz visitas a um psiquiatra e a um psicólogo, na esperança de afastar a depressão que veio a reboque da doença. Era o surfista e amigo Aldemir Calunga que a levava às consultas e emprestava dinheiro para os remédios. Mas, desde agosto último, quando sofreu um acidente em Puerto Escondido, no México, que o deixou quatro dias em coma, Calunga não consegue mais ajudar como antes.

Os jornais da cidade anunciaram que a campeã estava passando aperto, e o Fortaleza, time de futebol local, doou 2 mil reais para o tratamento. “Mas já gastei tudo. Os remédios são muito caros.” Tita diz que está há dois dias sem tomar sua medicação, por falta de dinheiro. Na semana seguinte, ela iria saber se precisaria operar a tireoide ou se iniciaria um tratamento à base de iodo.

Sua renda atual, segundo ela, consiste em 400 reais mensais, recebidos através do Bolsa Atleta, um programa do Ministério dos Esportes. Quando tinha patrocínio e estava no auge da carreira, chegava a fazer 10 mil reais por mês. “Ajudei minha família, paguei inscrição e viagem de muito surfista daqui. Uma hora a grana acabou”, conta. Faz sete anos que não tem patrocínio. Mesmo assim, deu seu jeito para correr em competições nos quatro cantos do mundo. “No Havaí, eu dormia no carro e só comia abacaxi, que eu roubava do quintal do vizinho.”

Azar?
Enquanto isso, atletas menos laureadas contam com o suporte de diversas marcas. As razões para o descompasso são incertas. Mas é difícil não cogitar que seja preconceito: baixinha, nordestina e veterana, Tita passa longe do estereótipo da “gata de praia” tão propagado pela indústria do surf. Ela não vê dessa forma, acha que foi “azar e falta de visão dos empresários” e que “o que importa é ter surf no pé”.

Sentado ao nosso lado, Cláudio Cacão, dono da Aloha, uma das três escolas de surf do Titanzinho, opina sobre o assunto: “Precisamos criar um modelo sustentável para os surfistas daqui. Alguém tem que cuidar da carreira para eles se concentrarem apenas no que importa, que é surfar. Todos da nossa geração que fizeram isso se deram mal”. Os dois se conheceram quando Tita tinha 5 anos. Na época que, para pegar onda no Titanzinho, era necessário caminhar por cima do lixão que ocupava toda a faixa de areia. “A gente tinha que arrastar o lixo para os cantos para poder montar os palanques dos campeonatos”, ele relembra. “E dentro do mar tinha que ficar desviando de plástico, animal morto, todo tipo de coisa. A gente vivia com coceira na pele”, complementa Tita.

Tábua de madeirite
Filha de um casal de pescadores, Maria das Graças Tavares Brito Filha nasceu em 1975, na comunidade do Titanzinho, na rua Titã – não à toa, virou a Tita. Na infância, suas brincadeiras favoritas eram peão e futebol. “Nunca gostei de boneca.” Com 5 anos de idade, perdeu a mãe. Na mesma época, começou a pegar onda, por incentivo de José Carlos, o irmão mais velho (eram cinco filhos: duas mulheres e três homens). Aos 10, foi de ônibus sozinha competir o amador mundial na Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Aos 13, já tinha a própria casa, comprada com os prêmios que ganhava nos campeonatos. “Sempre quis sair de casa. Meu pai era alcoólatra, batia na gente.”

A primeira prancha era uma tábua de madeirite. Ela explica o processo “do-it- yourself” de construção: “A gente descolava as madeiras no lixo mesmo. As quilhas eram esculpidas em um monobloco de plástico que usavam para entregar leite na casa das pessoas. A gente roubava essas caixas, esquentava a faca e cortava o plástico no formato que queria. Depois encaixava uma coisa na outra”. A parafina eram velas surrupiadas de macumbas deixadas na rua. “Era só fazer um furo numa lata, jogar as velas e depois esquentar tudo. A resina que pingava a gente passava na madeira.” Famosa por surfar como os homens, Tita acredita que foram os tempos de surf de tábua que moldaram seu estilo.

“Agora tá bom de desgraça, brother. Dá licença que eu quero é surfar”, sentencia. Antes de cair n’água, aponta para um bar: “Foi ali que passaram fogo no nosso Thiago Dias [surfista-promessa de 22 anos]. O moleque era quebrador, foi uma grande perda”. Suspeita-se que o rapaz tenha sido morto por causa de dívidas com traficantes. Foi apenas a primeira de várias histórias de crimes ocorridos na região que escutaríamos durante o dia. Tita se alonga, pega a prancha tamanho 5’3”, usada geralmente por crianças, e, nem três minutos depois, já está “quebrando tudo”, como dizem os locais.

Session terminada, Tita tira da sacola um pente, desembaraça os cabelos queimados de sol e passa filtro solar fator 30 na pele, hábito que adquiriu com as gringas que conheceu nos campeonatos internacionais. Ela mora a 20 minutos dali, mas sugere que peguemos o carro, “pois a última equipe de reportagem que veio aqui foi assaltada”.

Noveleira
Com três andares, sua casa é a maior do bairro. Os cômodos são pintados de tons fortes, cada um de uma cor. As paredes estão descascando, quase não há janelas. Na sala, um móvel ostenta seus vários troféus. Há ainda uma televisão de LCD e um sofá, onde Tita tem passado mais tempo do que gostaria. “A única coisa boa é que agora vejo bastante novela. Confesso: sou noveleira.”

Há 15 anos, vive ali com Solange, mãe dos surfistas Pablo e Paulo Paulino. Elas se conheceram há 20, quando Tita salvou Pablo, o mais novo, de um caldo. Na época, ambas eram casadas. O ex-marido de Solange é chef de cozinha e deixou a família para trabalhar em cruzeiros transatlânticos. O de Tita se chama Ricardo e é irmão do surfista Fábio Silva. “Ele desviou para o crack. Eu viajava para os campeonatos e, quando voltava, ele tinha vendido tudo da casa”, reclama. “Um dia, disse para ele: ‘Mermão, pirulita daqui que agora sou eu que vou cuidar da sua mulher’. Ele saiu correndo”, Solange conta, orgulhosa. “Tita é a primeira mulher com que eu me relaciono. E vai ser a última.”

O que Tita mais deseja hoje é arranjar um patrocínio para voltar a competir. Mesmo que isso implique em sair do Titanzinho e ir morar em cidades como Rio e São Paulo, conforme algumas marcas exigem. “Iríamos a família toda: eu, a Solange e a Graúna [pássaro de estimação das duas], nossa filha”, diz.

Lá pelas cinco da tarde, o sol começa a se pôr no Titanzinho. Crianças e adolescentes saem da escola de prancha na mão e vão direto para a praia. De repente, o mar está apinhado de pequenos Fábios, Pablos e Titas. A Tita original adoraria estar no meio deles, mas já cumpriu sua cota de uma hora de surf diária. O jeito é pegar onda pela TV, com uma cópia pirata de Coragem de viver. O filme narra o drama da surfista havaiana Bethany Hamilton, que teve um dos braços devorado por um tubarão. Tita já surfou ao lado de Bethany e de outras atletas – todas loiras – que aparecem no filme. “Um dia, quem sabe, ainda vão fazer um sobre mim”, diz.

Crédito: Chema Llanos
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Crédito: Tony Fleury
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