Tetra na água

Pode parecer uma incongruência da vida, mas quando fiquei tetra não sofri com a impossibilidade de mexer do pescoço para baixo, mas com o frio.

por Mara Gabrilli em

Crédito: Arquivo Pessoal

Ao sofrer uma lesão medular, a temperatura do corpo entra num samba do criolo doido: se você está em um ambiente muito quente, parece que pegará fogo por dentro, mesmo sem suar uma gotinha. Mas se estiver em um local frio, a sensação é quase de hipotermia, algo bem parecido quando a mulher toma uma anestesia rack.

Por conta desse frio da morte, que chega e parece que não terá fim, quase me queimei usando um lençol elétrico no 220. O treco pegou fogo sem ter ninguém por perto. Eu fiquei em meio às chamas gritando por socorro. Por sorte sai ilesa, sem nenhuma queimadura. Na época eu não sabia o que fazer para me livrar da sensação.

A busca por calor já me rendeu queimaduras leves tentando me aquecer com bolsas de água quente. Também já queimei o olho no ar quente do carro...

Recém-lesionada, sofri por uns três anos até descobrir que submergir em uma banheira de água quentinha era milagroso.

Desde então não tem um dia sequer que eu não tome banho de banheira. Quando viajo, não procuro por quartos acessíveis, mas por acomodações que ofereçam banheiras. Se não encontrar, levo uma banheira inflável e instalo onde couber.

Já levei minha banheira inflável gigantesca para vários lugares da Bahia: Trancoso, Santo André, Imbassahy, Guarajuba... Também já levei em viagens para o Guarujá, no litoral de São Paulo.

Pode parecer exagero, mas a descoberta da banheira foi algo muito importante para mim. Foi a partir dela que ganhei energia e vitalidade para voltar a estudar e trabalhar depois que sofri o acidente e fiquei tetraplégica. Posso dizer que o que diferencia a condição física que tenho hoje são esses banhos que não abro mão.  Não há nada que me revitalize e revigore mais.

Pense que para alguém que trabalha sentado o dia inteiro, a musculatura do corpo vive em um estresse constante. Agora, imagine para alguém que por força maior está sempre sentado. Sair de uma cadeira de rodas depois de horas e ter o corpo desgrudado e solto na água é de um prazer sublime.

Quando estou em submersão, relaxo a musculatura, alongo o corpo, gero movimentos, flutuo. Deixo na água dores musculares, ansiedade, estresse. Não por acaso, muitos SPAs oferecem terapias com a água, como o watsu, que é uma espécie de shiatsu feito dentro de uma piscina aquecida. Os benefícios são enormes para qualquer pessoa, até para quem sofre de problemas como depressão e insônia. Algo como aliviar feridas da alma com água quentinha... 

Sempre fui uma apaixonada por água desde criança. Nadava em qualquer lugar que podia. Poder reviver essa relação depois que quebrei o pescoço me despertou um prazer orgânico. Me fez ver que a felicidade naquilo que é mais precioso e "disponível": a água. 

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