Sobre rodas

Presa a uma cadeira de rodas? Mara Gabrilli diz não se sentir pregada ao seu transporte

por Mara Gabrilli em

Ultimamente, nas rodinhas de bate-papo, ouvimos questões que vão além das rodas de uma cadeira. Como uma onda borbulhante que mostra o quanto uma novela da Globo tem o poder de repercutir em nosso país.

 

A maioria das pessoas acredita que o maior problema de um cadeirante seja a cadeira. Mas esse é o menor dos problemas, aliás, ela é uma solução de transporte. Só se torna um empecilho quando quebra, fura o pneu, enferruja e fica velha. Acabo de ler uma entrevista que fizeram comigo nas Páginas Amarelas da revista Veja. Lá tem uma expressão que nunca utilizei, nunca acreditei, e que pra mim faz parte de um preconceito histórico que gravita sobre uma cadeira de rodas. A frase é: "Desde que fiquei presa a uma cadeira de rodas". Presa como? Pregada tipo Jesus na cruz? Não durmo na cadeira, não tomo banho na cadeira, mas na banheira, e filhos de cadeirantes não nascem de cadeira como acreditam muitas crianças.

Outro dia encontrei com amigas cadeirantes e ficamos trocando experiências fisiológicas:

- Uau, você faz xixi em pé!

Eu estava em pé na cadeira de rodas com as coxas amarradas para deixar a uretra mais livre fazendo xixi.

Perguntei:

- Como você faz xixi?

Ela se impulsionou para cima com os braços e, num gesto de segundos no ar, arrancou a calça. Depois repetiu o salto e arrancou a calcinha. Lançou o quadril pra frente quase deitando no assento e sorriu:

- Assim, nesta posição.

E a outra observou:

- Eu geralmente me transfiro da cadeira para o vaso sanitário.

Xixi pode ser pouco complexo quando não se tem uma infecção urinária, que é muito comum para quem não se mexe. Nesse caso, descontrolam-se as rotinas.

E ela continuou a conversa:

- Grave para mim é que eu só sinto que vou fazer cocô depois que já fiz, por causa do cheiro.

Eu complementei:

- Eu sinto bem antes, mas, dependendo da textura, festejo!

As três gargalharam num consenso de que a alimentação premeditada para a firmeza dos produtos é fundamental.

Com que roupa?

E as pessoas ainda acham que a cadeira é o problema. Machucados, por exemplo, são um drama. Como a circulação de quem não se mexe é diferente, e por ser carregada o tempo inteiro, o risco de remachucar o machucado é enorme. Quando isso acontece, o que não é difícil, a vida quase para.

E quando estou pronta para sair e não gosto da roupa? Algo corriqueiro para uma mulher. Mas, para uma mulher tetra, as opções são: usar uma roupa de que não gostou ou perder o compromisso.

Fazer ginástica da forma como desenhei demanda tempo, disciplina e atenção flutuante também. Gosto de acrescentar dificuldades que se transformam em rotina. Já está na hora de mudar de novo e talvez adicionar facilidade.

Tipo: pedalei com os braços e alguém ajudando e mudei para eletroestimulação sem ninguém. Passei a pedalar em pé. Amanhã vou mudar a frequência de pedalar e da corrente elétrica. Da hora que eu acordo, entre me exercitar, tomar banho e ficar pronta, demoro cinco horas. Tenho versões flexíveis como fast ball, pocket ball, musculação reduzida, mas só tem big bike, e não existe a versão sem exercício.

Tudo demora uma hora para produzir e um pouco menos para desmontar, exceto a bola. E ainda tem gente que é capaz de acreditar que o maior problema de um cadeirante é a cadeira...

 

Mara Gabrilli, 40 anos, é publicitária, psicóloga e vereadora por São Paulo. Fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP), é tetraplégica e foi Trip Girl na Trip #82. Seu e-mail: maragabrilli@camara.sp.gov.br

 

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