Encaixotando Elena
“O anonimato de Ferrante é importante de ser considerado como uma escolha que acompanha uma posição literária (e, por que não, também política)”
Fabiane Secches escreve semanalmente sobre literatura, cinema e psicanálise na newsletter Virginia. Aqui, ela faz uma análise sobre a polêmica em torno do anonimato de Elena Ferrante, escritora que há 25 anos escolhe manter sua verdadeira identidade em segredo.
"Há dias, a internet e os principais veículos de comunicação do mundo comentaram a reportagem do jornalista italiano Claudio Gatti, publicada na New York Review of Books, e que pode ter “desmascarado” Elena Ferrante. Versões da mesma reportagem foram publicadas simultaneamente em jornais da Itália, França e Alemanha. Partindo de planilhas de pagamento cedidas por uma fonte anônima e de registros imobiliários públicos, o jornalista traçou paralelos entre o sucesso comercial de Ferrante e os pagamentos efetuados pela editora Edizioni à tradutora italiana Anita Raja. Assim, o nome de Raja passou a estampar os principais jornais do globo.
Em carta escrita a seus editores em 1991, antes de publicar seu primeiro livro, Ferrante comenta sua escolha pelo anonimato: “(…) acredito que os livros, uma vez que tenham sido escritos, não tenham qualquer necessidade de seus autores. Se eles têm algo a dizer, vão encontrar cedo ou tarde seus leitores”. Sobre isso, escrevi brevemente na introdução da minha análise de A Amiga Genial, primeiro volume da tetralogia.
Não é de hoje que Raja é um dos principais palpites de quem se dedica a desvendar a identidade da autora. Ela é uma respeitada tradutora de alemão (traduziu os escritores Christa Wolf e Kafka para o italiano) que vive em Roma e é casada com o escritor Domenico Starnone, um dos mais prestigiados autores italianos contemporâneos. Starnone já foi ele próprio apontado como a verdadeira identidade de Ferrante.
A especulação a respeito da identidade misteriosa é antiga: começou com a publicação do primeiro livro da autora, L’Amore Molesto (ainda inédito no Brasil), em 92. Mas, desde que a autora foi traduzida mundo afora, especialmente de 2014 para cá, a investigação ganhou proporções assustadoras. Com o sucesso de público e crítica, a tetralogia napolitana se tornou parte da cultura popular: a série, que teve seu último volume indicado ao Man Booker Prize deste ano, vai ser adaptada para o teatro e para a televisão. O segundo livro de Ferrante, Dias de Abandono, também foi levado para as telas em 2005. O diretor Roberto Faenza foi indicado ao Leão de Ouro do Festival de Veneza.
No momento, há uma comoção geral: diversos escritores e jornalistas se posicionaram em defesa da autora. Discussões a respeito da questão ética e literária foram suscitadas: até onde o jornalismo investigativo poderia ir em casos onde não há interesse político ou criminal, mas uma mera curiosidade do público? Teria a New York Review of Books deixado de ser uma revista sobre literatura e cultura para se tornar uma revista de caça a celebridades, algo como um tablóide de escritores?
Ferrante defende com convicção a separação entre a pessoa do autor e a sua obra. Paradoxalmente, agora foi alçada ao posto de celebridade. Em parte, por conta da beleza e força de seus livros; em parte, porque o mistério se tornou um desafio posto para muitos, uma caça ao tesouro digna de enredos policiais.
De minha parte, admito que sim, sinto curiosidade, mas aceito o não saber. Sempre me pareceu que seus livros e entrevistas me davam tudo o que eu precisava, como Ferrante defende nesta entrevista. E mais: o que é conhecer alguém? Saber qual o seu nome no documento de identidade, ver uma foto do seu rosto na orelha do livro? Nunca senti falta de nada em relação à autora. A escritora estava completamente implicada, com toda sua história de vida e visão de mundo, ainda que a serviço de escrever ficção.
Mas não me surpreende que a imprensa seja incapaz de respeitar a decisão de Ferrante em se manter anônima. Sempre imaginei que mais dia, menos dia, chegariam a ela, especialmente depois do sucesso astronômico dos últimos anos. Em um mundo ideal, Ferrante não precisaria abrir mão de seus valores para publicar — é o livro que está à venda, não a pessoa que os escreveu. Mas vivemos no mundo real e sabemos como ele funciona. Parece ingênuo pensar que seria diferente. Freud já falou no embate entre o princípio da realidade e o princípio do prazer. Princípio do prazer: viver a vida como gostaríamos que fosse. Nesse caso: publicar livros, sim, mas sem abrir mão da privacidade. Princípio da realidade: o mundo não se importa. Uma decisão subjetiva nada pode contra a lógica do mercado.
LEIA TAMBÉM: Sexo e literatura com Gabriela Winer
Não concordo com os argumentos de que Ferrante se 'vendeu' ou fez qualquer acordo tácito ao participar de um mercado a respeito do qual mantém reservas. Mas que ela está inserida nesse mercado, é um fato. Um livro não é apenas um produto, mas é também um produto. Ferrante é uma escritora anônima, não uma ermitã. Está inserida nesse mundo, que muitas vezes é injusto e cruel.
A posição de Ferrante desperta uma série de discussões valiosas para o cenário literário e cultural. No Brasil, desde a década de 1960, a crítica literária voltou a se interessar pela figura do autor. Por muito tempo, os críticos haviam se afastado da biografia dos escritores, dos bastidores da criação, e se concentrado no texto. Mas uma nova visão da crítica biográfica surgiu, possibilitando algo que podemos chamar de seu renascimento. Entretanto, é importante ressaltar: não se trata de estabelecer vínculos frágeis e artificiais entre vida e obra (como o autor da reportagem fez), nem de construir hipóteses diretas e simplistas de causa e consequência.
LEIA TAMBÉM: A fucking realidade de Antônio Prata
Para mim, o anonimato de Ferrante é importante de ser considerado como uma escolha que acompanha uma posição literária (e, por que não, também política), que a autora defende em entrevistas (como nessa conversa com seus editores publicada na Paris Review). E como essa decisão está espelhada em sua obra. A Lila da tetralogia, por exemplo, deseja se desintegrar, desaparecer completamente. Sabemos (desde o prólogo) que a amiga está desaparecida, deixando vestígios apenas no texto da narradora, Elena Greco, que então resolve escrever a história de ambas. Pois Ferrante também deixa vestígios de si nos textos de suas narradoras.
Por fim, vamos ao que realmente importa: os livros de Ferrante que estão saindo em português. Neste mês, a editora Intrínseca lançou A Filha Perdida, romance de 2006 inédito no Brasil. A editora também publicou o infantil Uma Noite na Praia, de 2007. E no fim do mês sai o aguardado terceiro volume da tetralogia napolitana, A História de Quem Foge e de Quem Fica, pela Biblioteca Azul, selo da Globo Livros."
Créditos
Imagem principal: Thiago Thomé