Sandoval, por Milly Lacombe
"As feministas que me perdoem, mas Sandoval é o homem da casa e eu não sei viver sem ele"
As feministas e panfletárias que me perdoem, mas Sandoval é o homem da casa e eu não saberia mais viver sem ele
Na primeira vez que o vi ele estava manobrando um carro. Minha irmã nos apresentou dizendo que ele era o vigia da rua e que quebrava um galho ajeitando os carros dos clientes na garagem do ateliê de bolos e doces dela. “A garagem é pequena e ele faz caber, sei lá como”, dizia ela enquanto entrávamos na casa.
Acho que depois disso, quando nos reencontramos, já emendamos um papo de futebol que durou vários minutos. Sandoval gosta de falar e contar e explicar. E ele precisou me explicar muito direitinho como um caboclo do interior do Alagoas tinha virado são-paulino.
Talvez a curiosidade dele a meu respeito tenha sido semelhante porque ele não conseguia processar a informação de que eu, vinda de uma longa linhagem de tricolores, era corintiana.
Meses depois, quando fui morar na casa onde funcionava o ateliê de minha irmã, nosso relacionamento se estreitou. Agora, além do futebol, assuntos da casa nos uniam. “Sandoval, tem um vazamento aqui na cozinha.” E, em segundos, ele se materializava ali com algumas ferramentas para arrumar o troço. “Sandoval, o homem da TV a cabo diz que vem hoje. Se eu não estiver em casa, você entra com ele?” E ele entrava e ajudava na instalação. “Sandoval, tô sem água quente e preciso tomar banho”, e ele vinha com suas ferramentas e, como um feiticeiro, resolvia o problema.
A casa é nossa
Quando o objeto de minha obsessão foi morar comigo, o papel de Sandoval ganhou ainda mais em cores e ele passou a ser o fundamental homem da casa – que me perdoem as feministas e panfletárias, mas eu não saberia mais viver sem Sandoval.
Já foi solicitado para abrir a lata do molho de tomate, para colocar quadros na parede, para matar a barata – e me mostrar o cadáver porque só assim acredito que o bicho do inferno de fato morreu – e, quando Cora achou elegante entrar no quarto carregando entre os dentes a oferenda de um passarinho que ela matou e trouxe ensanguentado, e minha mulher e eu nos trancamos aos gritos histéricos no banheiro, foi ele que rompeu para dentro a fim de nos salvar do que imaginou que fosse um serial killer.
Sandoval tem a chave da nossa casa e a liberdade de entrar e sair mesmo quando não estamos. Mi casa, su casa, Sandoval. Normalmente faz isso quando o São Paulo joga em rede fechada de TV.
Nos seis anos em que nos conhecemos, nunca faltou ao trabalho. Debaixo de chuva, de frio ou de um sol de lascar, começa seu dia pontualmente às sete da manhã varrendo a rua, e aí só vai parar depois das sete da noite. Quando temos que viajar e não sabemos o que fazer com as cachorras, é para a casa do Sandoval que elas vão.
Em novembro, quando Sandoval comemora o nascimento, eu provo meu respeito e afeto fazendo o enorme sacrifício de comprar camisas oficiais do São Paulo para ele. E ele retribui não tirando sarro quando meu time perde para Tolimas da vida.
Zefinha e Sophie
Domingo passado, depois das 11 da noite, Sandoval me telefonou. A voz dele era quase trêmula e meu coração disparou. “Ô, Milly! Ô, Milly”, ele sempre começa a falar comigo assim. “Ô, olha, ô, nasceu.”
Ele estava ligando para dizer que Zefinha, sua mulher e companheira, tinha acabado de dar à luz Sophie. “É com ph e ie no fim”, explicou. “Minha filha mais velha que escolheu, eu não sei nem falar isso, mas parece chique, né?”, continuou debochado.
Dei os parabéns, contagiada pela enorme felicidade dele. “Ô, olha, eu vi tudo.”
– O que, Sandoval?
– Nascer. Eu vi. Entrei na sala e ia sair porque achei que ia passar mal, mas ela pulou pra fora de repente e eu vi tudo – ele agora soava emocionado.
Embora Sophie fosse seu terceiro filho, os dois mais velhos, com 16 e 14, ele não tinha visto nascer.
“Ô, Milly, olha, quer ver foto? Pera, fala aqui com minha filha e dá seu e-mail para ela. Ela é que vai te mandar”, e me passou o telefone. Os dois filhos mais velhos de Sandoval estão estudando e querem fazer faculdade.
Quando voltei a falar com Sandoval, perguntei se ele tiraria uns dias para ficar em casa com Zefinha e Sophie, e ele me disse rindo que tiraria apenas um dia para encontrar o pai da criança e obrigá-lo a fazer o registro.
– Como assim, Sandoval? – perguntei intrigada.
– Ô, você viu como é loirinha? Eu quero achar esse pai e mandar o cara registrar.
Na terça-feira, passei na guarita para dar um abraço em Sandoval e entregar um presente para Sophie. Ele estava mais sorridente do que o habitual e, orgulhoso, colocou a cabeça em meu ombro como um gatinho que quer afago. “A menina é linda”, eu disse. Ele sorriu e concordou, responsabilizando Zefinha pelo feito. Mas, quando eu já estava indo embora, ele me chamou. “Ô, Milly, é linda sim, mas mesmo se não fosse a gente ia criar do mesmo jeito e com o mesmo amor.”
Esse é Sandoval, um dos homens mais elegantes, sofisticados e fundamentais que já tive a sorte e o prazer de conhecer.
A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com