Salve-se quem puder
Nina Lemos encara aula de defesa pessoal para entender porque as mulheres procuram cada vez mais esse tipo de curso
Furar olho, matar com uma caneta e jogar agressores no chão. Dá para aprender tudo isso numa aula de defesa pessoal. Medo!
"Se um sujeito segurar você pela mão, puxando, não dispute na força. Mova o braço dele para trás, assim...” E pronto. Estou jogada no chão. Derrubada. Depois de um golpe aplicado pelo meu professor de defesa pessoal, Luciano Imoto. A técnica faz sentido. Uma mulher é mais fraca. Puxar o braço do agressor para a frente não vai adiantar mesmo. “O lance é ser ágil e pegar o agressor desprevenido.” Sou pega desprevenida. E estou deitada no chão de um tatame em uma academia de artes marciais em São Paulo, os braços doloridos, o pescoço também, assustada. Não só com os golpes do professor, mas com todas as violências que ele me lembra que estamos sujeitas a passar.
Luciano não dá mole para meu corpo nem para minha alma. “Em caso de sequestro, roubo a faca, tiro, estupro…” Ele enumera todos os ataques dos quais posso ser vítima na rua. Deitada no chão do tatame, estou com medo. Mas também excitada pela adrenalina do golpe.
Medo. É essa a motivação das mulheres que procuram as aulas de defesa pessoal de Luciano e de outros treinadores que têm desenvolvido programas exclusivos para o sexo feminino. Cursos proliferam em todo o Brasil e já estão até em academias badaladas. Em Salvador, por exemplo, o curso oferecido pela prefeitura para mulheres tem fila até 2014. As moças querem se defender, poder andar sozinhas na rua. Têm medo de estupro. E muitas, segundo Luciano, já foram alvo de agressão. “Temos dois tipos de alunas aqui: as que querem evitar as agressões e as que nos procuram porque já foram agredidas. Elas já foram estupradas, sofreram violência doméstica e aprenderam que precisam se defender.”
Os cursos intensivos duram uma semana, com aulas todos os dias. As mulheres são 60% na academia. Enquanto os homens querem conquistar boa forma física, as garotas querem se defender. A procura do curso por parte das moças aumentou nos últimos dois anos. A realidade é dura na academia Imoto, que oferece aulas de MMA, jiu-jítsu e defesa pessoal.
Minhas primeiras lições são de como me defender de ataques sem armamento. Se alguém me agarrar por trás, devo passar por baixo dos braços do agressor que me prende pela cintura, virar de frente e, com as pernas, dar um chute no saco dele. Também aprendo que posso colocar a mão no seu queixo e virar sua cabeça para trás – se eu tiver força e agilidade, o derrubo no chão com a outra mão. O professor tem tudo isso e, de novo, lá estou eu estendida no tatame.
O golpe não é complicado. Volto para a redação ensinando todo mundo. Dá uma sensação de adrenalina e de poder mostrar que se “aprendeu um golpe”. Coisa louca.
Nuca, saco, traqueia
São lições barra-pesada. E práticas. Áreas sensíveis que podemos atacar: olhos, ouvido, nuca, zona genital, pescoço, traqueia, veia jugular e esterno (para o caso de querer matar alguém). “Você vai me ensinar a matar?”, pergunto, meio brincando, para o professor, que mostra que não está de brincadeira. Sim, ele me ensina golpes letais. Logo para mim, uma pacifista criada ao som de bandas como Cólera – lembro de Pela paz em todo mundo – e que nunca brigou com ninguém na vida, a não ser com uma prima, na infância. E que sempre apanhou.
Eu? Capaz de matar alguém? Luciano olha nos meus olhos e acena que sim. “Em casos de risco, em que você está na iminência de ser estuprada, você pode, sim, aplicar um golpe letal. Ele é absolutamente legítimo.” “Mas eu não quero matar uma pessoa”, respondo, já acreditando que isso vá acontecer em poucas horas.
Dá uma sensação de adrenalina e poder mostrar que se aprendeu um golpe
Nos próximos minutos, a chapa só vai ficar quente. “É importante você usar os objetos que tiver à mão. Objetos do uso cotidiano”, diz o professor. São eles:
Revista. Sim, finalmente achamos uma utilidade para a publicação que você tem em mãos (brincadeirinha). Mas sério: você a enrola, faz uma espécie de porrete, pega bem no meio para que ele fique firme. E usa nas tais áreas sensíveis. Meta uma revistada na jugular ou na nuca do agressor. Ou no saco (mentalizo que essa é minha área preferida de ataque porque não corro o risco de matar ninguém).
Chave. Você coloca entre os dedos, como se fosse uma soqueira. E, de novo, ataca as regiões sensíveis, como o olho. “Depois de levar um furo no olho o cara não pode mais te agredir.” Medo. Não quero furar o olho de ninguém. Mas com a chave, se eu for ágil, posso também matar uma pessoa. A jugular, lembram?
Caneta. Excelente e assustador objeto de defesa pessoal, ensina Luciano. Ele pega uma caneta e me mostra onde ela pode ser usada. Tímpanos (ai), olhos (para cegar), jugular. Pânico.
Essa é a parte light da minha manhã ninja. O professor ainda aparece com canivete (um de mentirinha e outro de verdade) e revólver de borracha. Nos próximos minutos, aprenderei a tirar a arma de um assaltante e a esfaquear. E ainda ouvirei o conselho de que poderia, sim, andar com um canivete pendurado no pescoço.
É duro se imaginar rendida por trás, refém, com uma faca na barriga ou um revólver na cabeça. Muito duro. Ainda mais para quem, como eu, já sofreu tentativa de sequestro relâmpago e ficou com a arma na cabeça pensando: “Vou morrer, vou morrer” (na ocasião fiquei extremamente calma, implorei pela minha vida e os assaltantes fugiram). Também já estive com uma faca na barriga, sentindo o quanto ela é fria. “Passa seu celular e não grita, madame.” Em todas essas situações, fiz o que recomenda o bom senso: não reagi.
Essas lembranças vêm na minha cabeça. Lembranças que eu, como milhares de pessoas, evito para continuar a viver. A barra-pesada, psicologicamente falando, da aula de Luciano é que ele nos lembra da violência O TEMPO TODO.
"Mas eu não quero matar", respondo, já acreditando que isso vai acontecer
No meio de tudo isso ainda surgem dicas simples, como “nunca arranhar um rosto de baixo para cima”.
Arranhe de lado, assim você fere mais a córnea da pessoa. Medo. Ele também me ensina a tirar um olho de uma pessoa (e não vou contar como é, de jeito nenhum).
Filme de terror
No fim da aula de uma hora, a adrenalina baixa e começo a sentir vontade de chorar. Me divirto brincando de As Panteras, apontando uma arma. Mas, de novo, eu não quero ter que matar ninguém. Não quero furar um olho. E também não quero que me matem. Nem que furem meus olhos.
Entendo quem faz aula de defesa pessoal. Mesmo. Muitas feministas pregam que a gente deve, sim, fazer. Já que não temos a mesma força física dos homens, que a gente se prepare para não ser sempre “a frágil” ou dependente da ajuda masculina em caso de uma agressão. Faz sentido. Alguns encontros feministas têm workshops de defesa pessoal catárticos. Em que, além dos golpes, as meninas aprendem a dizer “não”. Essa é uma prática comum das feministas sérias do mundo todo.
Eu, estirada no tatame, depois de ter furado um olho fictício, estourado um tímpano, tirado a faca da mão de um assaltante e dado uma facada nele, só consigo pensar: “quero ir embora dessa cidade, quero ir embora dessa cidade”. Pelo amor de Deus, alguém me tira desse filme de terror em que a gente precisa aprender a matar ou a morrer.
O bagulho é louco, mano.