Recado do Dalai Lama
O dia que o Dalai Lama mandou um recado para mim por causa de uma febre que não passava
Estou estudando um texto budista que fala sobre o sofrimento, tema clássico no budismo. Um dos tipos de sofrimento se chama “sofrimento sobre sofrimento” e basicamente quer dizer que as coisas sempre podem piorar. O que eu não imaginava é que iria receber uma aula prática sobre o tema!
2:30h. Madrugada. A Graziela acorda com febre. Justo hoje, dia que eu iria receber a minha primeira iniciação com o Dalai Lama.
9:00h. Lá fomos eu e a Tenzin, xará do Dalai Lama que se chama Tenzin Gyatsu e babá tibetana super fofa da Gra, atrás de um médico. Fomos parar no Delek Hospital, em Macleod Ganji, hospital público dos refugiados tibetanos. O hospital é pequeno mas é organizado e limpo. As pessoas são antendidas duas ao mesmo tempo em uma salinha por médicos que não falam o melhor inglês do mundo. A Graziela para ajudar deu chilique, bateu no médico e se enroscou inteira no fio do meu ipod. O diagnóstico, bronquite, antibiótico e a recomendação de voltar no hospital para fazer uma inalação caso a Gra piorasse. Bye-bye iniciação com o Dalai Lama.
1:00h. Parecia que o Garfield estava dentro do peito da Gra. Madrugada, chuva, e acabou o crédito do meu telefone. Apelei e acordei a Gaía, minha vizinha brasileira. Todos os motoristas de taxi que a gente ligou não atenderam o telefone. Deixei para ligar por último para o taxista que eu tinha brigado e lógico que foi o único que atendeu e falou que não iria me levar para o hospital porque eu tinha reclamado que ele era caro. “Harrrri, pleaseeeee, this is an emerrrrrgency!!!!!” Putz, agora eu estava devendo um favor para o mais mala de todos. Peguei o telefone da Gaía emprestado. Fomos parados pela polícia no caminho do hospital. A porta do hospital estava trancada e tivemos que gritar para acordar o segurança (e todos os pacientes internados). O médico de plantão virou para mim e disse que não era pediatra e não sabia o que fazer pela Grá. A essa altura o Garfield estava fazendo a festa dentro do peitinho dela. Pedi para o médico fazer uma inalação. A máquina de inalação parecia ser dos anos 50, mega barulhenta, e deve ter acordado o resto das pessoas. A Gra começou a chorar de medo da máquina. O médico entrou na sala e falou que podia ser bronquite, asma, ou uma outra doença que fecha a garganta e asfixia a criança. Surtei e liguei para a minha mãe no Brasil acionar o seguro saúde internacional para levar a gente para outro hospital. O aparelho de inalação começou a soltar uma fumaça fedida e deu um curto circuito. Não sabia se a inalação estava ajudando ou sufocando a Gra. Super surtei e tive a “ótima” idéia de ir para o hospital Apolo em Nova Deli, 10 horas de carro de distância. A minha mãe, que já me conhece de outros carnavais, tentou me explicar que viajar para outro estado não era a melhor solução. Minha mãe tentou ligar para o pediatra no Brasil que não estava. Acabou o crédito do telefone da Gaía. O médico recomendou que eu fosse para casa e procurasse um pediatra no dia seguinte, virou as costas e foi embora. A enfermeira disse que não podia fazer nada para ajudar e foi dormir.
3:30h. Fiquei sozinha com a Gra dentro do hospital. Todos os motoristas de taxi na frente do hospital estavam dormindo. Bati nos vidros dos carros e os *&#@ se recusaram acordar e levar a gente para casa. Voltou a chover. Entrei no hospital, deitei a Gra na maca da sala de emergência e tentei dormir sentada. Consegui dormir, um homem começou a gemer de dor, acordei. Voltei a dormir, uma mulher começou a chorar de dor, acordei. Fiquei com muita pena das pessoas amontoadas em macas na sala ao lado, sem assistência nenhuma. Pensei: “Que &%##@ eu tô fazendo aqui na Índia!!! Bom, vim ficar perto do Dalai Lama e ele está nesse momento dormindo há dois quilometros daqui.“ Fechei o olho, respirei fundo e comecei uma conversa silenciosa com o Dalai Lama. “Poxa, olha só quanto sofrimento, todos esses tibetanos, povo que você ama tanto, e a gente aqui sofrendo.” Lembrei que ele passou o dia dando a iniciação de Yamantaka, uma deidade irada, protetor super poderoso. Pedi ajuda. Acalmei e dormi.
6:00h. Tá na hora desses motoristas acordarem. Quase quebrei o vidro dos carros e nenhum motorista se mexeu. Voltou a chover. Entrei com a Gra na padaria que tinha acabado de abrir. Pedi um tchai. Estava furiosa com os taxistas. Por um momento esqueci tudo que tinha aprendido sobre equanimidade e carma e que a minha chapinha fica destruída na chuva, baixou a pixadora da zona leste, saí na chuva e escrevi FUCKY YOU no vidro do taxi. Dois macacos caíram da árvore e começaram a brigar do meu lado. Entrei na padaria com o cabelo crespo, o rímel borrado e tomei o tchai. Consegui parar um taxi que estava passando na rua. A chuva piorou. Cheguei em casa feliz por não ter furado o pneu do carro e decidida a achar algum pediatra, hospital e um raio X. Dormi.
12:00h. A babá Tenzin chegou em casa com um embrulho para mim. Ela, sem saber de nada, acordou bem cedo e foi até o templo do Dalai, falou com o segurança amigo dela e conseguiu conversar com a Sua Santidade. A fofa da Tenzin foi pedir para o Dalai Lama rezar para a Gra ficar boa e falou que a mãe (que nesse momento estava perto deles pixando carros e fugindo de macados, descabelada) estava muito preocupada. O Dalai Lama deu na mão dela um saco de dutsis (pílulas sagradas tibetanas), falou para a Gra e para mim tomarmos uma de manhã e de noite, e do alto da sua imensa sabedoria disse o seguinte: “Fale para a mãe ficar calma, que a filha vai ficar bem. Ela não precisa se preocupar com nada e não deve levar a criança para nenhum hospital. Fale para ela ficar em casa” O Dalai Lama era a única pessoa do mundo que faria eu desistir de achar um pediatra, um hospital e um raio X e ficar em casa. Eu acalmei e a Gra sarou.
Não fiz a iniciação com o Dalai Lama dessa vez, mas me senti protegida pelo Yamantaka e abençoada pelo Tenzin Gyatso. O pacotinho amarelo com os dutsis que ele me deu ficam do lado da cama para me lembrar que se o sofrimento existe, milagres também acontecem.