Questão de identidade
Rie Rasmussen conta como deixou o topo da moda e fala de seu filme, em cartaz na Mostra
Ela desfilou para marcas mundialmente conhecidas como Gucci, Dolce & Gabanna e Givenchy. Posou em editoriais de moda para a conceituada Vogue francesa, além de aparecer nas edições alemãs e italianas da revista. E depois, deixou o mundo da moda. "Eu não queria essa carreira. Queria trabalhar com artistas, ter experiências incríveis, únicas" explica a cineasta dinamarquesa Rie Rasmussen ao site da Tpm. E é exatamente como vive há quinze anos: em busca de experiências incríveis. Já morou na França, na Alemanhã, nos Estados Unidos, na Costa Rica, na Macedônia, na Sérvia, em Kosovo, passou algum tempo no Afeganistão. Desenha, fotografa, escreve, dirige filmes e atua. Mas sempre que ouvir seu nome, será lembrada como uma modelo.
É uma nômade desde que saiu da casa dos pais, aos 16 anos, para estudar cinema no Hollwyood Film Institute. Deixou seu país frio e escuro para trás e seguiu sua paixão por filmes na ensolarada Califórnia. Morou na casa do cineasta Wes Anderson, viveu na praia, foi criada por amigos. Mas para começar a escrever roteiros, se mandou e foi conhecer o mundo. "Quando você é uma garota nova, quer experimentar de tudo para sentir que tem o suficiente para falar em uma história. E eu tinha muita imaginação, mas não é a mesma coisa que experiência de vida". Para se manter, aceitou fazer alguma fotografias como modelo, mas sua primeira grande chance foi como uma personagem secundária no filme Femme Fatale, do diretor Brian de Palma - que havia ouvido falar Rie.
Foi aí que a moda entrou em seu caminho: o estilista Tom Ford, diretor criativo da Gucci ouviu falar da atriz e a contratou para uma campanha da grife. Que foi lançada antes da estreia de Rie nos cinemas. "Todo mundo começou a dizer: 'Olhe, a garota da Gucci conseguiu um papel no filme de Brian de Palma'. E eu queria sair gritando: 'Não, a garota do filme de Brian de Palma conseguiu uma campanha da Gucci'" comenta, rindo. E sem nem mesmo ter um agente um assessor, acabou conseguindo grandes campanhas e capas de revista. Mas como não era a carreira que queria, não pensou duas vezes em abandonar tudo. Deixou a moda, se concentrou, escreveu um roteiro que transformou em um curta-metragem e teve a honra de ser indicada a Palma de Ouro do Festival Internacional de Cinema de Cannes - "Senti que estava sonhando".
Alta, deslumbrante e absolutamente animada, Rie está em uma passagem rápida pelo Brasil para o Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro e para a 33ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Veio apresentar seu primeiro longa-metragem, Human Zoo, em que relata as dificuldade que imigrantes enfrentam, sem entender suas próprias identidades - com algumas experiências que a própria vivenciou. No filme, que escreveu e dirigiu, atua ao lado de Travis Marshall, seu grande amor.
Rie falou ao site da Tpm com empolgação e sinceridade sobre de como não gosta de ser conhecida como modelo, explicou seu "alter ego" (a fotógrafa Lilly Dillon) e detalhou as experiências incríveis que viveu até agora.
Como você começou sua carreira?
Comecei como estudante do Hollywood Film Institute, na Califórnia, com 17 anos. Fui para a Califórnia porque queria fazer filmes e tinha idade o suficiente para poder ir. Mas, antes disso, já desenhava. Quando era pequena, fazia filmes frame por frame, o que eu descobri depois que se chamava storyboard [o roteiro do filme contato quadro a quadro em um papel, parecido com uma história em quadrinhos]. Mas eu era criança, não sabia o que estava fazendo. Elaborava filmes muito dramáticos e desenhava uma cena por vez. Depois gravava minhas história numa fita e tocava ela enquanto ia passando os desenhos. Tinha uns 6, 7 anos. Era fofo, porque eu sempre fui uma contadora de história, era a coisa mais importante para mim e fazia por horas a fio.
Então você sempre quis fazer filmes?
Cresci em um país frio e escuro, totalmente ao norte, onde não há sol por pelo menos metade do ano. Minha fuga eram os filmes. E era muito prazeroso ver filmes, era como se eu escapasse para o país das maravilhas por algumas horas. Minha vida girava em torno disso.
Mudar para a Califórnia deve ter sido incrível, então.
Sim, fiquei muito empolgada. Quando você é uma garota nova, quer experimentar de tudo para sentir que tem o suficiente para falar em uma história. E eu tinha muita imaginação, mas não é a mesma coisa que experiência de vida. Então eu viajei. Fui para o Hollywood Film Institute. Morei com o [cineasta] Wes Anderson e com o [ator] Owen Wilson, que moravam juntos, entre meus 16 e 18 anos. Eles me levavam a todos os festivais de filmes, era muito interessante. E viajei muito, escrevia muitas histórias, testando minha habilidade como escritora.
Como seus pais reagiram? Você saiu de casa relativamente cedo.
Eu tinha 16 anos quando saí de casa. Mas na Dinamarca a cultura é diferente. E eu era muito estudiosa, comportada, confiável. E queria fazer filmes há tanto tempo, era meu sonho, então eles me deixaram viajar. Minha mãe sentia muitas saudades, ficou muito triste e assustada. Mas sabia que, se não me deixasse ir, eu fugiria. Então eles abraçaram a ideia e confiaram em mim. E sabiam que podiam. Sou muito mais irresponsável hoje em dia!
E como você bancava suas viagens?
Com uns 12 anos comecei a trabalhar em um brechó, comecei a juntar dinheiro. Meu pai também me ajudou e eu sempre vendi ilustrações e desenhos que fazia. Depois, tive alguns amigos que eram fotógrafos. Antigamente você não precisava ter um agente nem nenhuma dessas coisas. Se você aparecesse em um estúdio e deixasse te fotografarem, as pessoas simplesmente te davam uns Us$ 6 mil em dinheiro. Se você morava na Califórnia, como eu, dava para viver quase um ano! Para comer tacos não se gastava quase nada! [Risos] Daí fui para Paris, África, Costa Rica, viajava para todos os cantos do mundo. Com 23 anos, em Paris, comecei a escrever um filme. E o Brian de Palma estava fazendo casting de elenco por lá. Eu não tinha agente nem empresário, mas ele ouviu falar de mim, porque eu era meio louca, e resolveu me colocar em Femme Fatale [2002].
"Eu não quero vender calcinha da Victoria's Secret. É um ótima marca e imagino que muitas garotas ficariam muito felizes em fazê-lo, mas queria fazer outras coisas com minha vida. Queria fazer filmes."
E como foi trabalhar com Brian de Palma?
Ele era um ídolo, um herói para mim. Trabalharia com ele fazendo qualquer função. Imagine, então, sendo atriz! Quer dizer, meu papel foi filmado em uma semana, mas fiquei no set de filmagens por dois meses. Aprendendo, observando. Falava sobre minhas ideias de fazer um filme, ele pensava que eu era completamente maluca. [Risos] Eu era essa garota seminua andando pelo set e perguntando sobre o posicionamento da luz, o que as pessoas estavam fazendo. Era engraçado.
Depois de filmar, você fez uma campanha para a Gucci. Como isso aconteceu?
É até cômico. Nós filmamos e o Tom Ford ouviu falar de mim – ele adora filmes e acompanha o cenário. Quando me viu, resolveu assinar um contrato exclusivo para uma campanha da Gucci, assim, do nada. Mas o que aconteceu foi que o filme demorou cerca de meio ano para ser lançado, enquanto a campanha saiu alguns meses antes. Então todo mundo começou a dizer: “Olhe, a garota da Gucci conseguiu um papel no filme de Brian de Palma”. E eu queria sair gritando: “Não, a garota do filme de Brian de Palma conseguiu uma campanha da Gucci”. Foi muito triste. Nunca tive um assessor de imprensa, empresários. Meus primeiros assessores foram aqui nos festivais de cinema brasileiros, há três semanas! E é tão bom tê-los! Fiz escolhas na minha carreira muito diferentes das escolhas comuns, e a parte triste disso é que nunca tive alguém para me ajudar a ser reconhecida. Tudo bem, fiz diferente. Mas ninguém fazia a menor ideia sobre mim!
E você ficou famosa por ser uma modelo!
E eu nunca. olha, eu não tenho um site oficial, nem pretendo. Existem sites de fãs. Porque muitas pessoas se tornam fãs de modelos. Eu nunca dei entrevistas ou me promovi como modelo. Disse não para a Victoria's Secret por seis anos. Recusei muitas campanhas de grifes. Eu dizia que não queria fazer isso, não queria ser modelo. Mas ninguém sabe disso. Existe um monte de fãs na internet supondo que eu devo ser o que pareço, e eu nem sabia. Dei um Google no meu nome no Festival de Berlim, este ano, e percebei que sou conhecida como modelo. Sendo que eu nem me importo. [Risos] Eu tentei não ser modelo.
Mas você fez trabalhos grandes como modelo.
Sim, fiz campanhas muito grandes, trabalhei com a Vogue francesa, a italiana. Sempre trabalhei com pessoas visionárias. E foi isso. Não fiz outras coisas. E desafio você ou qualquer outra pessoa a encontrar uma modelo que diga “Não”. Porque é a carreira que elas escolheram. Eu não queria essa carreira. Queria trabalhar com artistas, ter experiências incríveis, únicas. Então fiz Givenchy, Dolce&Gabbana, Gucci. Quanto ao resto? Não. Eu não quero vender calcinha da Victoria's Secret. É um ótima marca e imagino que muitas garotas ficariam muito felizes em fazê-lo, mas queria fazer outras coisas com minha vida. Queria fazer filmes. As pessoas pensavam que eu era uma louca de pedra. Recusei muito dinheiro, então ninguém conseguia acreditar. De qualquer forma foi muito interessante ver como era esse mundinho por dentro e ver o que realmente acontece nele: um monte de merda! [Risos.]
Você investiu o dinheiro que ganhou na moda para fazer filmes?
A grande questão é que as cifras que a imprensa divulga não são verdadeiras. Nenhuma modelo ganha tanto assim. Algumas ganham bastante dinheiro, só que os jornais sempre colocam um ou dois zeros a mais. Mas consegui produzir um filme com credibilidade, que estreou no Festival de Berlim. Além do meu primeiro curta-metragem [Thinning the Herd, de 2004], que foi indicado à Palma de Ouro em Cannes [também em 2004].
Como foi quando descobriu que tinha sido indicada em Cannes com seu primeiro trabalho?
Senti que estava sonhando. Foi absurdamente empolgante. Eu fiz Femme Fatale, depois me envolvi com toda a questão do mundo da moda e parei abruptamente, com uma campanha da Dolce&Gabbana, dizendo que precisava me concentrar. E eu me concentrei. E fui indicada em Cannes.
Você lançou um livro de fotografias sob o pseudônimo Lilly Dillon. Quem é Lilly Dillon?
Tirei o pseudônimo da personagem do livro de um dos meus autores norte-americanos favoritos, Jim Thopmson. O livro se chama The Grifters e foi transformado em filme [de mesmo nome]. A Anjelica Houston faz o papel da Lilly e ela é muito cool e nojenta. Achei engraçado, porque eu não sou nada disso. Mas ter um alter ego que é meio cool e nojento é bem legal.
Então você também é a Lilly Dillon? É um alter ego?
Não, no fim foi só um nome tirado de uma referência que gostava. Mas não é um alter ego. Achei que seria mais fácil para mim. Estava dirigindo e atuando na época, mas também tirava bastante fotografias. Achei que seria uma forma de não me colocarem um rótulo. Que iria ser melhor, para as pessoas não ficarem confusas. Mas no fim isso só as confundiu mais!
"Parei abruptamente, com uma campanha da Dolce&Gabbana, dizendo que precisava me concentrar. E eu me concentrei. E fui indicada em Cannes."
Você escreve, dirige, atua, pinta, ilustra, fotografa. Como você consegue fazer tudo isso?
É porque eu não faço por fazer. Faço porque é o que sou. Sou uma contadora de histórias. Essa é a chave de tudo que faço: eu conto histórias quando desenho, quando pinto, quando escrevo, quando dirijo. Acho que você já nasce sendo um contador de histórias. E faço parte dessa categoria. Se estivéssemos vivendo na época que viviam em tribos, com certeza eu seria aquela pessoa que contava histórias para os outros em volta das fogueiras.
Quais são suas influências no cinema?
Gosto de Howard Hawks, John Houston. Sou muito fã dele, acho que consegue ser muito sombrio, mas mesmo assim comercial. O Tennesse Willians escreve perfeitamente, é fenomenal. O Sam Peckinpah é o cara mais malandro, faz filmes deliciosos. Também gosto do Sérgio Leone. E de Billy Wilder. Ele transcende todos os gêneros, se encaixou em tudo que fez. E o filme que mais gosto no mundo é A dama de Xangai, de Oscar Welles.
Como foi a produção de Human Zoo, seu primeiro longa-metragem?
Os últimos três anos da minha vida foram muito ruins, porque a produtora do filme não queria fazer o mesmo filme que eu. Então brigávamos todos os dias. Foi muito difícil para mim. Esse filme é meu bebê, eu escrevi, dirigi, coloquei toda minha paixão nele. Meu sonho era fazer meu primeiro filme e o Luc Beson [cineasta] ficou tentando arranjar problemas, dificultando as coisas. Não quero entrar em detalhes. Imagine ele dirigindo Cidade de Deus. Mas lançado de forma completamente oposta do que ele é. Não seria legal.
E o que você queria contar em seu filme?
Bom, coloquei muito das experiências que tive nos últimos 15 anos em que passei viajando. E tenho uma história interessante que eu considero ser, essencialmente, sobre como é ser uma mulher nos dias de hoje, como ter uma identidade própria em uma sociedade internacionalizada. Vivemos sendo identificados por nossas nacionalidades e eu ficava pensando, e se você não tem uma nacionalidade?
Você é uma pessoa bastante internacional, nesse sentido.
Exatamente. E o que é que eu sou, então? Não me sinto dinamarquesa, não me sinto americana, com certeza não me sinto francesa. Eu me sinto muito próxima das pessoas brasileiras. Mas eu não sou brasileira. Entende? Então o filme fala sobre identidade. E também sobre a identidade feminina e a masculina. Fui criada em uma sociedade dominada por homens, e foi ali que encontrei minha identidade, dentro dessa característica. É interessante porque você pode colocar uma mulher em um ambiente masculinizado e com certeza ela vai encontrar seu caminho, deixar sua marca.
"Fui uma nômade minha vida toda, mas nos últimos anos acho que não fiquei mais de três semanas em nenhum lugar"
Onde você vive atualmente?
Passei os últimos três anos entre Kosovo, Macedônia e Sérvia, fazendo pesquisas e filmando. Também fiz pesquisas no Afeganistão, passei um tempo por lá e comecei a me envolver com organizações feministas que trabalhavam com órfãs em Kabul e na fronteira paquistanesa. Então, depois disso, acabei tendo que ir morar na causa dos meus pais, eu e meu amor, porque gastamos todo nosso dinheiro filmando. Depois fomos para o Festival de Berlim e moramos por lá uns tempos, e depois continuamos a viajar pelo mundo – República Tcheca, Londres, Paris, Nova York. Fui uma nômade minha vida toda, mas nos últimos anos acho que não fiquei mais de três semanas em nenhum lugar.
Você pensa em algum dia dar um tempo, ter uma casa?
Eu estou morreeendo de vontade de ter uma casa em Florianópolis. [Risos] Quero uma casa lá, quero viver comendo goiaba e surfando, todos os dias. E se algum dia tiver eu for ter um bebê, quero que seja lá.
Faz parte dos seus próximos planos?
Meus planos são ter uma ótima passagem por aqui, depois ir para Nova York passar o Natal e voltar, ficar no Rio até fevereiro. Estamos começando um documentário, aqui no Brasil, sobre reciclagem e sobre transformar o mundo em um lugar mais saudável. Também penso em fazer uma série de pinturas sobre o Brasil, com o espírito brasileiro, a dança, o ritmo, as pessoas. Quero captá-los. O Brasil é meu plano. Quero fazer mais filmes, pinturas, celebrar a vida sendo criativa. Eu fotografo, escrevo, faço um desenho todos os dias da minha vida. E não é porque me obrigo a fazer. É porque é o que tenho feito minha vida toda.
O que você considera belo?
Acho que a beleza é algo muito específico, que depende muito do olho de quem vê. Em alguns lugares do mundo, ser bonito é ter a pele clara, porque significa que você não precisa trabalhar. Em outros, você tem que ser muito magra, em outros, bronzeada. No mundo animal, ser colorido e ter um cheiro marcante é belo. Depende muito da cultura em que você está. Mas a beleza exterior pode facilmente se transformar em feiura. Você pode ver uma mulher linda com uma atitude horrível, e ela se tornará um monstro. Mas acho que carisma, sorrisos, personalidade, dedinhos. Depende da pessoa. Beleza é algo muito individual.
E você não é o tipo de pessoa que dá dicas de beleza, né?
Não! Eu lavo meu rosto com sabonete, uso o hidratante que estiver ali. Mas faço esportes, como coisas saudáveis, respeito o que meu corpo precisa, respeito a máquina e meu coração. Cuido de mim mesma. Me amo. E me respeito.