Por Patrícia Varella
Eu construí minha vida em cima do que julguei que precisava. Aos 33 anos de idade fui surpreendida pelos acontecimentos dessa mesma vida que eu instiguei buscando a verdade da minha existência que nada depende de nenhuma falsa necessidade. O necessário é viver!
Carro furtado. Ajustes. A vida não pára. Acordo bem mais cedo do que já era cedo e caminho até o ponto de ônibus – que na calada da noite está lotado de trabalhadores honestos. Levam suas humildes marmitas e, sem dúvida, sobreviverão ao dia sem terapia, comida orgânica, ioga ou meditação! E eu, no topo dos meus problemas inventados, observo a simplicidade que carrega uma alegria quase ingênua. Na menor demanda, são extremamente solícitos, como se não conhecessem mau humor ou indisposição. São verdadeiros karma iogues. Fazem o que deve ser feito. Sinto vergonha por já ter sentido preguiça ou mesmo ter perdido a hora para meus afazeres que tinham propostas além da sobrevivência. Quem é mais iogue? A resposta me leva ao divã!
O emprego fixo e convencional deixado para trás e com ele o consumismo de tantas coisas de que jamais realmente precisei. Esse fato estava na minha cara o tempo todo. “Existem coisas que o dinheiro não compra, para todo o resto existe o cartão de crédito”, dizia o comercial, mas eu, teimosa como uma mula, quis pagar por ela, uma a uma! Como não estavam à venda eu jamais as possui. Aliás, nenhuma posse. Foi tudo desejo e vontade efêmera. Uma das escrituras hindus, o Krishna Purana, diz que é possível amaldiçoar alguém dizendo “que todos os teus desejos se realizem”. É justamente isso, segundo o Vedanta, que nos amarra eternamente no mundo: o ímpeto de saciar nossos desejos. E hoje sei o quanto eu mesma me amaldiçoei.
A verdade é que tudo já é meu, nosso. Mas jamais possuído. É solenemente para utilização. Eu teria que conquistar tudo para clamá-lo de meu aproveitamento. Essa conquista era minha de fato, sobre quem intrinsecamente sou. Teria que edificar minha alegria e satisfação em algo duradouro e eterno como a potência da vida que faz rios correrem, estrelas brilharem e humildemente nos mantém vivos. Teria que abandonar meus falsos conceitos da segurança que é ignorante do imprevisível inerente ao cotidiano. Teria que abrir mão das minhas explicações de como o cosmos todo funciona para poder vivê-lo, ainda que sem compreensão. E assim teria que admitir a dura e fascinante realidade que nada entendo da vida e que mesmo assim, em demonstração compassiva, ela me convida a viver a todo instante sem nenhuma alteração de seu curso diante da minha ignorância.
Ganges, Nilo, Himalaia? Não, marginal do Tietê mesmo
Percebo que todos os meus esforços poderiam ser resumidos à meta de totalmente estar presente não em busca de amor, mas em gratidão por todo amor que já foi provido e que só depende de cada um de nós poder senti-lo. A percepção disso é divina, sagrada e imaculada, é capaz de elevação. Como escrito no Mahabharata – épico hindu – “cada ser é uma divindade ainda por nascer”. Mas note que isso afeta só o fenômeno, maya, em que tempo é uma ilusão linear. No absoluto já somos porque derivamos da essência. Em outras escrituras: “Sois luz, andai como filhos da luz”. Ou seja, o “tornar-se” é possível somente no transitório, verbo “estar”. No absoluto o verbo é “ser”. E notem que em nenhum o verbo é “ter”!
Depois de haver estado em cavernas aos pés do Himalaia, em rios como Ganges e o Nilo, mares como o Morto, jejum, oração, peregrinações, pirâmides e vigílias, por fim encontro Deus no acaso. Ele pacientemente espera por mim – e por cada um –, na magnitude de toda sua manifestação enquanto caminho na rua de uma cidade que é lar, fora estatísticas do censo demográfico, de 20 milhões de habitantes. Ando sozinha sem solidão. Meu coração é cheio e livre prisioneiro. No caminho para casa, a surpresa de estonteantes cores de uma borboleta sobre uma folha verdíssima que serve de rede para a beldade. Parecia a primeira vez que via algo assim. Paro por um momento e sorrio emocionada para ela como quem pergunta: “Por onde você esteve?”. E tenho a sensação de que a ex-lagarta, ex-lagarta como eu, me surpreende de novo: “Por onde VOCÊ esteve?”. Não importa. Aqui e agora bastam. Consciência. Se algo, isso seria tudo de que preciso.
