Quem casa quer carro

Em 30 dias, jornalista roda por mais de 7mil quilometros acompanhada do namorado francês

por Gabriela Maraschin em

Assim que o avião decolou, me dei conta do que havia feito. Tinha deixado minha família e amigos e abandonado meu trabalho – na época, apresentava o RBS Esporte, da RBSTV, afiliada da Rede Globo no Rio Grande do Sul. E agora estava voando sobre o Atlântico para fazer a melhor descoberta da minha vida. Do outro lado do oceano, meu namorado, o francês Shay, me esperava em Paris. A euforia do reencontro terminou quando ele me apresentou nosso novo “companheiro”. Há exatas 12 horas, ele havia comprado um utilitário C-15 no sul da França, atravessado o país para me buscar e vivido uma relação de amor com o carro. Eu não conseguia entender como alguém podia se apaixonar por um ferro-velho daqueles, uma banheira verde, de 1989, que pertencera ao Office National des Forêts (Ibama francês). O carro era todo furado e cheio de surpresas, como tocas de marimbondo, teias de aranha, barro e galhos de árvores. O Shay me olhava e dizia: “Mas, Gabi, custou só 700 euros! Não é lindo?”. Foi em nossa tartaruga ambulante que enfrentamos cinco horas de direção até Poitiers, a 338 quilômetros de Paris, entre Tours e La Rochelle, onde moraríamos pelo próximo ano.

Durante aquele ano conhecemos praticamente todo o interior da França em passeios de um dia. Era inverno, impossível dormir no carro. Aproveitamos esse tempo para transformá-lo em casa: limpamos, colocamos cortinas, prateleiras e colchão. Quando o clima melhorou, partimos para a grande viagem seguindo para o norte.

Percorremos a costa da Bretanha e da Normandia, até chegarmos ao Mont Saint-Michel. As falésias, o turquesa do mar e o frio misturado à solidão daquela paisagem nos fizeram sentir em um livro de histórias. De lá, seguimos para a Bélgica. Descobrimos Bruxelas em festa: em cada praça tinha um show de jazz – era fim de maio, época do festival Brussels Jazz Marathon. Passamos a tarde andando pelas ruas, ouvindo música e bebendo a famosa cerveja belga. Depois, partimos para Amsterdã. Chegamos tarde da noite, mas a tempo de nos perder em meio a bicicletas, pedestres, canais e bares. No dia seguinte, depois de horas caminhando, entramos em pânico: não lembrávamos onde estava o carro. Percorremos rua por rua e levamos duas horas para avistar nossa casa estacionada na margem de um canal. Encontramos uma das rodas com uma trava e um bilhete em holandês no para-brisa. Multa!

Pagamos 104 euros e voltamos para a Bélgica. Sorteamos Bruges no mapa. Jamais imaginávamos encontrar tamanha beleza e harmonia ao cruzar os velhos portões da “Veneza do Norte”. Durante a noite, bebendo vinho no gargalo, desvendamos cada cantinho da cidade, inspirados pela leveza daquele lugar.

Rumo ao Marrocos

Voltamos a Poitiers, na França, para entregar as chaves do apartamento e levar as malas para nossa casa ambulante. O único plano era ir para o sul até chegar ao Marrocos. Primeira parada: País Basco. Ficamos uma semana entre Hossegor, Anglet e Biarritz surfando. Atravessando a fronteira, do lado espanhol, a cultura e o nacionalismo basco são fortes. Os moradores falam o euscaro, uma das línguas mais complexas do mundo. Getaria, San Sebastián, Zarautz, Mundaka e Bilbao são cidades conhecidas. Mas, ao longo da costa, existem pueblos com pequenos portos e praias lindas.

Seguindo pelo litoral, na Cantábria, não encontramos mais chuveiro em algumas praias. Nesses dias, banho, só de mar. Em Santander, estacionamos do lado do farol e lá passamos a noite. Ao amanhecer, pegamos uma estradinha de terra e descobrimos a Costa Quebrada, com dezenas de praias escondidas. Escolhemos uma praticamente deserta para tomar café da manhã. 

Nas Astúrias, a praia do Silêncio, cercada por paredões de rocha, aconchega por sua forma de meia-lua. E o nome diz tudo: lá não se ouve nada. Para chegar até ela, é preciso percorrer as estradas de terra e os milharais espalhados pela costa. Passamos ainda pela Galícia, por seus cata-ventos e suas praias de areias brancas. Vimos o mar interditado para o surf por causa de uma ressaca que trouxe ondas de 5 metros. De noite, dançamos com casais da terceira idade num show de música galega. Dormimos perto da fronteira com Portugal numa rua escura, que julgamos pouco movimentada. Mas o dia raiou e nos vimos no meio de uma feira livre. Tirar o carro de lá não foi fácil. E, desse jeito, demos adeus aos galegos e a seu idioma engraçado, um misto de português, castelhano e latim.

Seguindo em direção ao Marrocos, cruzamos território português. Passamos por Porto (onde dormimos na beira do rio Douro), Supertubos (na região do Peniche) e Lisboa, de onde seguimos para o sul. Cruzamos a fronteira e voltamos à Espanha. Em nossa primeira noite na Andaluzia, acordamos de madrugada com o carro sacudindo. Achei que fosse assalto, mas era só um bêbado que subiu no teto do C-15 para dançar. Demos uma volta em Sevilha e seguimos para Tarifa, de onde saía o ferryboat para o Marrocos.

O conto do tapete

Ficamos em dúvida se atravessávamos o estreito de Gibraltar, pois ouvimos histórias de gente que se meteu em roubada no Marrocos. O próprio Shay já tinha ido e achado pouco seguro. Mas eu o convenci a voltar à África. No ferry conhecemos um casal de espanhóis que nos convidou para ir a Chefchaouen com eles.

Em Tanger dividimos um grand-taxi, que faz transporte entre cidades. Nas duas horas seguintes, de dentro do velho Mercedes – que parece ser o único tipo de carro existente no país –, avistamos vilarejos enfeitados para a visita do rei do Marrocos, Mohammed IV, camponeses ocasionais conduzindo suas ovelhas pelos campos e o pôr do sol colorindo a cordilheira. Sentimos um pouco de medo na estrada e agradecemos por não termos ido de carro. Os motoristas ultrapassam de qualquer jeito, jogando outros veículos para o acostamento, onde sempre tem crianças brincando. O susto passou ao chegarmos a Chefchaouen, onde ficamos três dias.

A cidade é toda azul e branca. Linda! Procuramos um hotel na medina (parte antiga) e fomos passear pelo labirinto de ruas coloridas. Chefchaouen fica encravada nas montanhas, o que justifica suas dezenas de escadarias e ladeiras. Dá uma sensação esquisita olhar em volta e só ver azul. Parece que estamos no céu. Em algumas esquinas, os marroquinos oferecem kif (maconha) aos turistas. Comemos muito cuscuz e tomamos o tradicional chá de menta, que é oferecido aos visitantes como símbolo de hospitalidade. Recusá-lo pode representar ofensa. Mas o que devemos recusar, sem dúvida, é a insistência de vendedores que atacam os turistas no souq (mercado). Seduzidos por um tipo desses, que prometeu mostrar produtos dos berberes do Saara, entramos numa tenda que, na verdade, era uma loja de tapetes. O vendedor nos mostrou a loja inteira e insistiu na venda até o clima pesar...

Fomos embora num ônibus local, daqueles com galinhas e gente suada. Felizmente, chegamos vivos a Tanger e a tempo de pegar o ferry. Em meia hora, pisamos em solo europeu. Visitamos Granada e cortamos o interior da Espanha pela rota de Dom Quixote.

Foram 30 dias, seis países, dezenas de cidades e mais de 7 mil quilômetros de estrada gastando o mínimo possível – 600 euros para cada um. Tivemos o mundo como quintal. Andamos livres, sem rumo, sem planos. Descobrimos vilarejos perdidos, distantes das pegadas dos turistas. Tomamos muito banho gelado e passamos alguns dias sem ver chuveiro. Perdemos a frescura e encontramos o melhor lado da vida. 

*Gabriela Maraschin, 30, é jornalista e Shay Reboh, 29, é doutor em física e se sente mais brasileiro do que francês. Consideram-se casados desde que voltaram desta viagem e tiveram uma filha, a pequena Yael, há dois meses. Confira mais sobre a viagem em seu blog www.fuiprascucuias.blogspot.com

Dicas

Quem leva

PARIS – A Lufthansa opera voos de Porto Alegre a Paris, ida e volta, com escalas em São Paulo e Frankfurt, R$ 1.430

AMSTERDÃ Lufthansa, ida e volta, partindo de Porto Alegre, com escalas em São Paulo e Frankfurt, R$ 2.537. Iberia, ida e volta, de São Paulo a Amsterdã, com conexão em Madri, R$ 1.905.

BRUXELASLufthansa, ida e volta, com escalas em São Paulo e Frankfurt, R$ 2.399.

KLM, ida e volta, partindo de São Paulo, R$ 1.806, com escala em Amsterdã.

BILBAOIberia, ida e volta, com conexão em Madri, R$ 2.075.

Carros

Na fronteira Alemanha-França, os carros são mais baratos. Consulte: www.carachat.com e www.lacentrale.fr. Compramos o C-15 por 700 euros e acertamos a venda por 1.100 euros antes da última viagem.

Estradas

Prefira as nacionais (não autopistas). Sem pedágio, elas cortam cidades menores.

O que comer

Preparávamos nossa comida. Até em pequenas cidades encontramos os supermercados Ed, Dia e do Lidl. Restaurantes: em Vitoria Gasteiz, interior basco, visite o La Malquerida. Tem pratos especiais e baratinhos – alguns por 2,50 euros. Experimente carnes com frutas. Correría, 10, (34) 945-257-068. Nas Astúrias, em qualquer padaria, peça chouriço de javali ou cervo. Em Marrocos, conheça a tradicional Casa Aladim. O hotel restaurante fica na praça central: 039-989-071.

Onde dormir (no carro)

De carro, van ou trailer, é comum pernoitar na praia. Longe do mar, optamos por postos de gasolina, áreas de repouso nas estradas e praças ou ruas afastadas dos centros.

Onde ficar

A Clickhotéis oferece opções de hospedagem em todos os lugares do mundo. Você encontra 275 hotéis em Paris e 57 em Amsterdã. Além de opções em Poitiers e Mont Saint-Michel, na França; Bruxelas e Bruges, na Bélgica; San Sebastián, Sevilha e Granada, na Espanha; Porto e Lisboa, em Portugal. Reservas Clickhotéis (11) 2196-2900, www.clickhoteis.com.br. Entre as 11 opções em Bilbao, a dica é o Novotel. Rio Castanos, 2 – Barakaldo. Diária: R$ 230. Em Bruxelas há 67 indicações, como o Holiday Inn Garden Court – Parc des Expositions. Avenue Impératrice Charlotte, 6. Diária: R$ 317,50.

Em Chefchaouen, no Marrocos, ficamos na Pension Cordoba, por 7 euros a diária: 61-926-759. A 20 minutos de Bilbao, a pedida é passar uma noite numa típica casa euscaro, a hospedaria Iberreko Errot, antigo moinho de trigo e milho. Ariatza, s/n. Muxika. Viscaya, 946-251-743. Em Zumaia, tem um casarão colorido, o Landarte. Com vista para a praia, a casa tem telas do pintor Antón Eguiguren nas paredes. Ctra de Artadi, 1, 943-865-358.

Trecho imperdível

A Costa das Astúrias, na Espanha, tem praias selvagens, quase desertas. Imperdível é a praia do Silêncio. A melhor maneira de chegar é pelo vilarejo de Cudillero. Sem carro, use os trens. www.renfe.es e www.feve.es.

Vilarejos escondidos

Getaria, no lado espanhol da Costa Basca, é um pueblo acolhedor, onde andamos por ruelas e aprendemos palavras em euscaro. Mais ao sul da Espanha, chegamos a Tarifa, cidade muito visitada por europeus, mas fora do roteiro dos brasileiros. É conhecida como um dos melhores lu­ga­res do mundo para a prática de kite e wind­surf, além de ter a vista mais bonita da Europa para a África. É de Tarifa que partem os ferryboats para o Marrocos.

O que levar

Levamos o guia Michelin, que indica onde estão os pedágios (se precisar das vias expressas), e o kit básico: saco de dormir, lanterna, canivete, uma panela, dois pratos, garfo e faca, fogareiro e botijão pequenos. Para as gurias, a dica é levar lenço umedecido para a higiene na falta de banheiro.

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