Enquadrando as minas
É só colocar mulher nas HQs para que a história seja encaminhada para uma de nossas caixinhas com estereótipos prontos. Mas será que só existe quadrinho machista e quadrinho feminista?
Os quadrinhos são um produto da cultura de massa e reproduzem discursos, sentidos, representações e valores da nossa sociedade. O que a acontece é que a nossa sociedade está cheia de estereótipos. Os famosos quadrinhos de Maitena são machistas? Quem representa melhor as mulheres nas HQs brasileiras, Chiquinha, com seu humor escrachado, ou LoveLove6, em sua militância feminista? E o que Laerte Coutinho produz hoje em dia é humor feminino?
Quando classificamos o humor por gênero, a oposição binária entre masculino e feminino pode até captar certa a diversidade, mas acaba dividindo “universos”. Além disso, outras questões de gênero ficam de fora, como as transgeneridades. Por isso, quando um dos maiores cartunistas do Brasil, que sempre levou uma atitude de “macho”, se assume publicamente transexual, como fez Laerte, essa discussão ganha ainda mais força.
Vale voltar um pouco no tempo, para o caminho que o feminismo percorreu nos quadrinhos. A partir dos anos 60 começou a acontecer a segunda onda do movimento feminista. Se a primeira fase tinha foco na superação de obstáculos legais para a igualdade, a segunda, que durou cerca de 20 anos, discutiu as estruturas de poder sexistas e as desigualdades culturais e políticas das mulheres. Muitas sociedades começaram a refletir sobre algumas concepções racistas ou machistas. Nos quadrinhos, passou a aparecer personagens femininas combativas e lutadoras, ainda que as mais conhecidas fossem mulheres sexualizadas e submissas. Até mesmo as heroínas, famosos símbolos sexuais, começaram a mudar e a participar de histórias de super-heróis do tipo “bom moço”, como em O Homem Aranha, de Stan Lee. Isso abriu portas para a Mulher Gato nas edições atuais da DC Comics, por exemplo, que é bissexual na história da roteirista Genevieve Valentine.
Entre os anos 70 e 80, mais mulheres passaram a publicar HQs e suas histórias já traziam questões sociais, sem serem necessariamente feministas. As cartunistas Aline Komnsky-Crumb e Trina Robbins, dos EUA, a inglesa Posy Simmonds e a francesa Claire Bretécher foram algumas das primeiras a conquistar sucesso pelo mundo usando a ironia e o humor como críticas sociais. A mulher já não era mais apenas coadjuvante do contexto masculino e começou a ter voz para falar de sexo, trabalho, política e família de forma mais realista. Então, a partir na década de 1990, outras cartunistas entraram de vez para o hall da fama mundial, como a iraniana Marjane Satrapi, a japonesa Chica Umino e a argentina Maitena. E, com a abrangência da internet, foi ficando cada vez mais fácil fazer e divulgar trabalhos independentes, e chamar a atenção do público.
No caso de Maitena, justamente pelo seu enorme sucesso, muita gente se pergunta sobre a representação da mulher em seus quadrinhos. Se no começo de sua carreira, ela publicava as personagens La Fiera e Coramina em histórias cheias de independência e erotismo, em seus trabalhos mais famosos publicados entre 1998 e 2006, como Mulheres Alteradas, ela representou mulheres cara a cara com o melhor e o pior de si mesmas: obsessão por conseguir um marido, pelo sucesso profissional, pela maternidade e em combater a celulite. Mas há quem interprete isso como reforçar os estereotipados “problemas de mulherzinha”.
No contexto brasileiro atual, Gabriela Masson, a Lovelove6, talvez seja a maior representante dos quadrinhos feministas e militantes. A brasiliense é autora de zines e webcomics independentes, como Garota Siririca, seu trabalho mais conhecido, que fala sobre masturbação, homossexualidade e liberdade sexual. Já Fabiane Lagona, a Chiquinha, usa o humor escrachado para falar tanto de sexo e fatos do cotidiano como de questões políticas. Difícil dizer o que representa melhor o universo feminino. Até porque, de qual universo feminino estamos falando exatamente?
Se a busca por representatividade nos quadrinhos é tão difícil quanto à busca por representatividade na vida real, o importante é haver cada vez espaço para autoras cis e transgênero, e para trabalhos que remetam ao feminino, ao prazer, à liberdade e à igualdade em todos os contextos e universos.
*Gabriela Borges é jornalista e mestre em antropologia, especializada em história em quadrinhos. Diretora de conteúdo na Agência Pulso e criadora do Mina de HQ.