Puta de respeito
Gabriela Silva Leite gosta mesmo é de ser chamada de puta
Prostituta, profissional do sexo, especialista em fantasias sexuais. Os nomes são muitos, mas Gabriela Silva Leite gosta mesmo é de ser chamada de puta. Conheça a fundadora de dois puta trabalhos de respeito, a ONG DaVida e a Grife Daspu
Ela é responsável por criar duas instituições importantes. Escolheu ser puta porque gostava de ser, é fanática por joguinhos de computadores – seu preferido é o Final Fantasy 4. É fã de Luiz Melodia. Gosta de Reginaldo Rossi – mas o acha horrível de feio. E se derrete pela neta. Uma pessoa normal até então, se não fosse pelo detalhe acima, ser puta.
Nada de termos politicamente corretos, como prostituta ou profissional do sexo, Gabriela Silva Leite, 54 anos, gosta que chamem as colegas de profissão de puta, e teve suas duas melhores idéias no botequim, a ONG Davida – que cuida dos direitos das prostitutas – e a “putique” Daspu – onde ela e outras prostitutas criam modelitos de roupas femininas e masculinas para vender.
Ali, parada discretamente no salão do Itaú Cultural, passa despercebida, mas, quando é chamada para debater preconceito e cultura junto de Regina Casé durante o projeto Antídoto, dispara a metralhadora verbal e acerta em cheio temas polêmicos como prostituição. Devidamente apresentada, Gabriela reservou quase duas horas de sua agenda atribulada para mostrar quem realmente é – e quem não é também.
Durante o seminário Antídoto, uma garota fez a pergunta que você tanto esperava, se você gostava da sua profissão e como entrou nela. Você respondeu que gostava de ser puta, mas não como entrou na vida. Como foi?
Eu estudava sociologia na USP, mas era de classe média baixa e tinha que trabalhar de dia e estudar à noite. Tinha duas turmas, era a década de 60, tinha o povo que pegava em arma e ia pra guerrilha e a outra turma que era carinhosamente chamada de porra-louca, e eu era dessa turma. Eu ficava nas madrugadas sentada no Redondo (antigo bar no fim da avenida Consolação), ali tinha o hotel Hilton e a boca-do-luxo, e bem na entrada do hotel tinha uma boate muito chique. Ficava olhando aquelas mulheres chegarem tarde da noite pra trabalhar, e meu grande sonho sempre foi trabalhar na noite. Aí pensei: “Por que não vou fazer isso?”. Os primeiros momentos foram difíceis, e percebi que tinha o mesmo preconceito de todo mundo sobre as prostitutas, e depois eu fui indo, e comecei a gostar de conhecer o mundo real, diferente daquele em que eu vivia.
E nessa época já existia a figura do cafetão?
Antigamente, eram mais mulheres, nunca trabalhei em casa onde o dono era um homem. Hoje, tem mais homens, e você encontra por aí uma atividade fora da lei. Eu não sou contra esses caras, os donos de casa, desde que sejam empresários que trabalhem direito, que não coloquem criança pra dentro, que tenham boa higiene, que não coloca o som altíssimo, porque conheço um monte de puta que fica surda, e não tem nenhuma compensação trabalhista, nada, nenhum direito. Eu acho que a gente pode passar por cima disso criando cooperativas e tirando o cara de lado, mas se cinco putas hoje montam uma cooperativa de putas elas entram no mesmo código dos caras, de exploração, por isso o congresso nacional tem que tirar esses caras do crime, para que eles venham a assumir os seus deveres. Hoje é terra de ninguém. Por exemplo, se uma puta vê uma adolescente dentro de uma casa de prostituição, vai denunciar pra quem? Não tem pra quem denunciar, entendeu?
E você concorda que a prostituição salva muitos casamentos?
É muito melhor a prostituta do que a amante. Amante é quem acaba com o casamento. A mulher ser de um homem só, e o homem de várias mulheres, é um valor terrível, que não leva em consideração quando o amor termina. Então, o que acontece é que às vezes o sujeito procura uma amante, duas, três, e começa a brigaiada em casa, porque a mulher não é boba, percebe, mas faz de conta que acredita que aquele marido só fica com ela. Às vezes o sujeito é mais esperto e procura uma prostituta, uma especialista em fantasias sexuais, e são várias as pessoas que têm por hábito procurar uma especialista, porque às vezes ele tem vontade de fazer alguma coisa e não fala pra mulher dele. Cansei de ouvir homens dizer “a minha mulher eu respeito”.
"É muito melhor a prostituta do que a amante. Amante é quem acaba com o casamento."
A boca que beija os filhos não pode ser suja, né?
Exatamente, é isso mesmo, essa é a grande frase, é um respeito meio torto. Tem a questão da nossa cultura católica, em que o sexo com aquela mulher séria e direita com quem você casou só pode ser para procriação, certo? Então é um saco tudo isso, não é do ser humano. Por isso que existe a prostituta.
E como foi a história de o Sebrae negar apoio para vocês?
Foi no Sebrae Rio, e olha que nem fomos pedir dinheiro, apenas capacitação. Fomos convidadas para os estandes do Fashion Rio que iam transar moda de periferia, e nos convidaram por causa da Daspu. Quando terminou o evento, o fulano lá que era presidente do Sebrae Rio nos disse que não tinha orçamento para a gente. Lógico que ele não ia negar diretamente. Depois, estávamos andando pelo recinto, e ele chegou e disse “a primeira coisa que vocês têm que fazer é ir pra escola aprender a ler”. Não sei de onde ele tirou isso, só pode ter sido da cabecinha burrinha dele. Eu falei “quem disse pra vocês que a gente não sabe ler?”, e ele “ué, todas as prostitutas são analfabetas”, aí eu desisti do Sebrae.
E a palavra puta hoje tem perdido o efeito ofensivo?
Tem sim, principalmente porque eu tenho usado muito a palavra. Como eu disse durante o Antídoto, os meios de comunicação usavam “p...”, só que com o sucesso da Bebel [Paraíso Tropical] começaram a deixar de lado a palavra prostituta e usaram puta mesmo. Até quando um deputado chamou o outro uma vez de filho-da-puta, nos defenderam, falando que as prostitutas deveriam ser tratadas com mais respeito.
"Hoje é o Bahamas, amanhã é outro, e é sempre a mesma história, prende, pega dinheiro, solta e está tudo certo"
E quando você perde a cabeça com alguém? Como você xinga?
[Risos] Ah, mando ir à merda, chamo até de filho-da-puta, não tem problema. Porque é assim, você pode perceber a importância da puta na sociedade, o nome pode ser usado para o bem e para o mal.
Quem são os filhos-da-puta do bem e os do mal?
O filho-da-puta do mal neste momento é o Renan Calheiros com seus companheiros dos votos nulos, o primeiro da fila é o Mercadante. Agora, filho-da-puta do bem tem tanta gente, por exemplo, a Regina Casé, é uma filha-da-puta do bem, tem uma história legal de trabalho.
E o que você acha dessa polêmica toda do Bahamas?
Eu acho um absurdo encherem o saco dele, primeiramente tem que perceber que a exploração só vai parar quando legarizarem a profissão. Hoje é o Bahamas, amanhã é outro, e é sempre a mesma história, prende, pega dinheiro, solta e está tudo certo. Pra ser casa tolerada como era o Bahamas, a verdade é que sempre pagam para a polícia, e não é pouco dinheiro.
Você já sofreu violência física?
Nunca, porque eu não tive coragem de trabalhar na rua, sempre trabalhei dentro de casas, nunca me meti com polícia. A grande violência física que a prostituta sofre vem de policial. E eu nunca me meti com drogas pesadas, cocaína, essas coisas, e também nunca tratei mal cliente. Uma vez me meti a trabalhar na rua, mas era ver um carro de polícia que eu saía correndo. Violência psicológica sim, ainda mais que eu sou uma puta pública. Minha filha mais velha já perdeu um cara porque ele descobriu quem eu era e o que fazia.
Já fumou maconha?
Sim, muitos anos atrás. Hoje em dia tenho tantos vícios, fumo um monte, bebo cerveja, que sustentar mais outro não ia dar.
Você disse que o melhor remédio pra dar idéia é a cerveja. Quais idéias você já teve?
Uma foi fundar o DaVida, e depois fundar a Daspu. As melhores idéias vieram tomando cerveja, adoro um botequim pé-sujo. Não gosto desses barzinhos da moda.
"A grande violência física que a prostituta sofre vem de policial"
Você e suas irmãs se dão bem? Elas pedem conselhos sexuais pra você?
A mais velha sempre passa férias junto comigo, a outra que está em São Paulo só pensa em trabalhar. A gente se dá superbem, conversa bastante, toma cerveja. A mais nova agora acabou de se separar e disse que não quer mais saber de homem nenhum. Eu falo pra ela que isso é uma bobagem, porque quando um amor acaba sempre nasce outro.
E qual o maior preconceito que você tem?
Eu às vezes me vejo em vários preconceitos. Um deles é que tenho mania de comprar sapatos caros, desprezo aquele baratinho, aí uma amiga vem e fala “não quer saber de coisa barata, né?”. É um preconceito contra o mercado popular, né?
E você já encontrou pirataria dos produtos da Daspu?
Sabe que eu ando na rua olhando. Eu olho pra ver se encontro, mas, se encontrar, o que eu posso fazer? Denunciar nas entrevistas como o povo da música anda fazendo? Porque, se você chama a polícia e eles prendem os caras, no outro dia chega mais gente. A pirataria tem a ver com essa sociedade em que falta de emprego, tem pobreza. E a pessoa quer ter coisas de marca e opta pelo mais barato.