Presa em uma tenda com 20 estranhos no meio da Amazônia
Ou sobre o dia em que morri nas águas do Tapajós
Abri os olhos e vi apenas a comple-ta escuridão que me cercava. Esta-va de cócoras, dentro de uma ten-da minúscula, rodeada por outros 20 cor-pos que, como o meu, suavam naquele espaço aquecido por dez pedras incandescentes, colocadas bem no centro da tenda para fazer com que o calor alcançasse temperaturas cada vez maiores. De tempos em tempos alguém jogava um pouco de água sobre as pedras, e então delas saía um vapor escaldante, fazendo o calor ficar ainda mais forte e sufocante. Senti minha pele grudar na das duas pessoas que estavam ao meu lado e isso me causou uma irritação brutal. Levei as mãos ao rosto para estancar tanto suor, mas elas estavam cheias de terra e minha pele suada fazia com que tudo grudasse nela. Melada e suja, encostei a testa no chão. Comecei a chorar, mas por sorte ninguém podia me ouvir porque todos cantavam uma música estranha. Tudo o que saía de mim eram lágrimas, irritação e desespero. Desespero por me sentir sufocar naquele calor absurdo, por perceber meu corpo colado
ao de desconhecidos, por estar sozinha como nunca estive antes, por não ter mais uma casa ou você ao meu lado, por não saber onde estava minha alma, por não saber o que estava por vir, ou quem era aquela mulher de cócoras no meio de uma tenda às margens do Tapajós.
As lágrimas saíam de um lugar desconhecido, fundo e dolorido. O que eu estava fazendo ali? Como pude deixar a Paola me levar para o meio da Floresta Amazônica? Um mês atrás eu morava em Nova York, tinha uma mulher, duas cachorras, livros na estante, roupas no armário, uma rotina que me oferecia a ilusão de estar no controle. Agora estava na Amazônia completamente sozinha, chorando de cócoras, suando como nunca antes, suja de areia e terra, meus livros amontoados dentro de malas na casa de minha irmã em São Paulo, as roupas amassadas em outras malas, minha alma fragmentada por lugares desconhecidos. O que teria acontecido? Por que não estávamos mais juntas se ainda havia amor? Por que nosso relacionamento estava passando por isso? Por que tinha topado me mandar para o meio da Amazônia com pessoas que achavam adequado dormir em redes, comer apenas grãos, se amontoar daquele jeito pouco civilizado dentro de uma oca de lona inundada de um calor absurdamente estúpido, ficar cantando músicas xamânicas e grudando pornograficamente umas nas outras? Uma angústia inédita me invadiu e quando puxei o ar para tentar sobreviver uns minutos a mais tudo o que senti foi um bafo quente e meu rosto queimar.
Floresta que fala
Aflita, abri os olhos e tentei enxergar alguma coisa, mas tudo o que via eram as pedras incandescentes dentro do buraco cavado para acomodá-las na areia. Notei então que delas saíam faíscas de luz vermelha, e a beleza daquela imagem me paralisou e depois causou uma hiperestesia visual. Em segundos fui inundada por uma sensação estranha, que depois entendi que era a capacidade de compreender sensações causadas pela percepção do belo; era como se minha consciência tivesse sido expandida de alguma forma. Estávamos ali havia quase uma hora, e só então pude prestar atenção na letra da música que eles cantavam.
"Como um rio que corre para o mar
Correntezas carregam o medo
Confiança para atravessar
A fronteira do eu derradeiro
Não há desculpas para se escorar
Já foi dito a hora é essa
O tempo é de se integrar
Abraçando o que ainda resta
Estou morrendo para o passado
E nem anseio pelo futuro"
As lágrimas ainda caíam quando comecei a rir. Passei as mãos no rosto, senti a areia esfoliar minha pele fina, uma sensação que há 5 minutos teria me irritado, mas que agora era boa e confortável. Lembrei de Joseph Campbell: "Só a privação e o sofrimento abrem o entendimento para tudo o mais que se esconde. No fundo do abismo desponta a voz da salvação, o momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a luz". Seria aquilo o que eu sentia? Estaria começando a entender alguma coisa? Resolvi me juntar àquelas vozes e cantei.
Enquanto cantava percebi assustada que a floresta lá fora tentava se comunicar comigo. O que podia ser aquilo? Exausta, não tinha força para julgar ou criticar e apenas aceitei aquela maluquice. A floresta então disse que eu deveria deixar que o medo saísse e ficasse ali com ela. Em troca, ela me mandaria amor. Me pareceu uma troca bastante boa para mim, e comecei a expirar medo e inspirar amor. "Nós sabemos o que fazer com seu medo, e você saberá o que fazer com nosso amor", ela disse. Aquilo era de uma bondade enorme, e eu morri de amor pela floresta e por tanta grandeza de caráter. Pensei em perguntar quando o sofrimento acabaria, mas entendi que não seria justo porque a maior troca de todas estava em andamento e seria íntegro de minha parte se eu apenas aceitasse o que me era oferecido como presente, talvez o maior deles, naquele instante. Entendi que era agora meu dever aceitar a vida, meu destino e aquela dor enorme porque era ela que, afinal, estava expandindo minha consciência. Senti minha pele colar ainda mais na das pessoas a meu lado e agora a sensação me pareceu adequada, sublime até. Seria aquilo um gosto breve da verdade absoluta? A de que somos todos um? A da experiência do eterno e de quem sou? Sentia que as portas de minhas percepções estavam sendo desobstruídas e, como escreveu Blake, podia agora ver as coisas como elas de fato são: infinitas. E, enxergando assim, ficava fácil amar tudo e todos, inclusive a dor e o sofrimento porque eles estavam agora vestidos de instrumentos do meu destino. Que bela noite para morrer, pensei.
Umbigo do mundo
Escutei a música mais alta dentro da tenda e percebi que já não me sentia mais sozinha. Naquele instante eu estava no umbigo do mundo, cercada pela maior floresta do planeta e quando, depois de uma hora, as portas da tenda se abriram, vi as águas do Tapajós, lindas e imponentes, e saí correndo para me jogar nelas. Afundei e voltei, inspirei e olhei para cima. Vi o céu estrelado e agradeci aquela maluquice toda. Pensei em você, no que fomos e entendi que nada acabou porque nada acaba nunca. Fechei os olhos e senti você ao meu lado. Vi nossas almas se encontrarem outra vez, maiores e melhores, e escutei a floresta dizer que só passando por isso poderíamos crescer e evoluir. Percebi a coragem que reside em não rejeitar as chances de morrer que a vida oferece. O anjo da morte tinha finalmente me alcançado e ele era lindo. Eu ainda boiava nas águas do Tapajós quando ele sussurrou em meu ouvido as palavras mais doces que já escutei: "Ficarão todos bem", ele disse; e então partiu.