Por onde anda Heleninha?
Mara Gabrilli: 'Continuo a me magoar com olhares discriminatórios a pessoas obesas como ela'
Não sei mais por onde anda uma das minhas primeiras amigas. Mas continuo a me magoar com olhares discriminatórios a pessoas obesas como ela
Heleninha era a filha de meus padrinhos. Foi a primeira das melhores amigas que tive na vida. Mas, apesar de vivermos coladas, havia uma discrepância aparente entre mim e ela que nos colocava em um abismo intangível de olhares alheios. Heleninha era gorda. Obesa. Eu era magra, magrela. E essa diferença entre nossos corpos me fez, ainda muito criança, entender o que tempos depois eu combateria dia a dia: o preconceito.
Sempre que viajávamos ou saíamos para algum lugar, ficava muito brava quando as pessoas gozavam de minha amiga por causa da gordura. Mesmo que não fizessem nenhum tipo de comentário sobre seu peso, eu sentia, sem saber que aquilo tinha nome, que o olhar para minha amiga era diferente. Era um silêncio desagradável e um olhar de reprovação, como se quisessem gritar: “Você comeu toda a comida da geladeira, esganada!”.
Hoje, não sei mais por onde anda minha amiga Heleninha, mas continuo a me magoar com olhares discriminatórios. E olha que, como tetraplégica, eu entendo bem de “rótulos”. Diferente da pessoa com deficiência, que é encarada com certo olhar de piedade, o obeso tem de lidar todos os dias com julgamentos cáusticos. Muita gente enxerga o obeso como alguém que, por fraqueza de personalidade, escolheu viver acima do peso.
Um pouco de Botero na sociedade
Obeso encara catraca apertada, provador pequeno, poltronas de transporte estreitas... Obeso paga a mais para sentar no avião. Paga fortunas para ter uma roupa que lhe caiba. Obeso não consegue fazer exames porque faltam equipamentos para ele. Obeso não pode ficar internado porque não há macas e ambulâncias que prestem o atendimento a ele. Obeso não vai a lugares permitidos ao “homem padrão”, como cinemas e restaurantes. Nem à igreja ele pode ir. Os bancos são estreitos porque a congregação é toda magra.
De acordo com dados do IBGE, no Brasil cerca de 10 milhões de pessoas são obesas. Segundo a Organização Mundial de Saúde, até o próximo ano, cerca de 2,3 bilhões de adultos estarão com sobrepeso e 700 milhões serão considerados obesos. Trata-se de uma das maiores questões de saúde pública no mundo. Ou seja, obesidade é uma doença. Então, por que ninguém olha feio para o diabético, o reumático ou o hemofílico?
Botero, pintor colombiano conhecido por retratar em suas telas mulheres gordas – muitos dizem até que ele é obcecado –, se diz interessado apenas no volumétrico. Para ele, onde há volume, há sensualidade e beleza. Penso que falta um pouco de Botero na sociedade. É o que diria hoje a minha amiga Heleninha.
Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br