Por alguém que respeite minhas manias

Elas começaram a aparecer na adolescência e vão se empilhando a cada dia

por Milly Lacombe em

Eu tinha 18 anos quando, às vésperas de um feriado prolongado, minha mãe, imaginando que uma adolescente gostaria de sair de São Paulo e ficar com amigos em alguma praia do litoral, quis saber para onde eu ia viajar. Estávamos no corredor de nosso apartamento paulistano, ela vindo da cozinha e eu indo para a sala. “Não vou para lugar nenhum”, disse. Ela me olhou intrigada. “Como assim? Com esse sol, não vai viajar com seus amigos?”

Tempos depois, eu entenderia que o ser humano em geral – e não apenas minha mãe – associa a aparição do sol a uma certa obrigação de sair de casa. Naquela tarde, expliquei que não estava a fim de ir porque não queria passar horas no trânsito das estradas. Achei que bastaria para convencê-la de minha sabedoria. Mas, antes de bater em retirada pelo corredor, ela apenas disse: “Meu Deus, 18 anos e já fala como uma velha cheia de manias”.

Fiquei ali parada, olhando para a parede e tentando entender qual era o problema escondido no fato de eu não estar a fim de viajar naquele bendito feriado de sol. Muitas outras vezes na vida seria confrontada por amigos com a associação sol/sair de casa e, em muitas, acabaria saindo apenas porque fazia sol lá fora e, afinal, essa parecia ser a voz impositiva do universo: saia de casa quando faz sol! Acho que foi a partir daí que aprendi a amar dias nublados e, meus preferidos, os chuvosos, ocasiões em que eu podia ficar em casa sem ser questionada ou julgada.

Mas o encontro com minha mãe no corredor teve outro significado importante: representou a primeira vez que fui exposta às minhas manias, que de fato são muitas e apenas crescem com o passar dos anos; talvez porque envelhecer seja empilhar manias.

Olhando em retrospecto, a primeira mania talvez tenha sido a de não dividir comida, uma mania que nasceu da transa entre a gula e o nojo. Como eu era igualmente gulosa e enjoada, não deixava beberem minha Coca-Cola nem morderem meu queijo quente, e isso valia para todos os seres humanos, inclusive minhas irmãs, meu irmão e meus pais. Se alguém pedisse um gole, eu, já muito contrariada, dava o copo e dizia: “Pode ficar, não quero mais”. A mania contrastava com a promiscuidade com que todos em casa comiam e bebiam, dando-se goles e mordidas: “Prova o meu, tá uma delícia”. “Muito bom. Agora prova o meu.” E eu, no meu canto, sem oferecer nem ser oferecida e achando aquilo tudo uma enorme putaria da qual preferia não participar. Por essa época que intuí um de meus objetivos na vida: encontrar alguém que respeitasse minhas manias e não pedisse nem gole nem mordida.

Manias da madrugada

Noite passada acordei às 5 da manhã sem motivo aparente e notei que meu objeto de devoção estava saindo da cama. “Aonde você vai?”, perguntei afundando um pouco mais a cabeça no travesseiro. “Ao banheiro”, respondeu ela sem se virar. Travamos esse mesmo diálogo noturno, e já mecânico, há oito anos. Ela se levanta, eu pergunto aonde está indo e ela diz ao banheiro. É uma de minhas manias. Talvez porque eu ainda tema que ela um dia saia do quarto e nunca mais volte. Na primeira vez que fiz a pergunta, ela apenas respondeu: “Aonde você acha que estou indo às 4 da manhã?”. E eu insisti: “Aonde? Aonde?”. E ela, já brava, disse: “Ao banheiro, caramba!”. Como nunca mais parei de perguntar, meu objeto de desejo entendeu que deveria apenas responder aonde estava indo, excluir o “caramba” da frase e seguir.

Mas na noite passada seria diferente. Quando ela estava voltando para a cama, perguntei: “Fechou a tampa da privada?”. E ela, resignada porque sabe que essa mania eu adquiri há mais de um ano quando escutei alguém dizer que fechar a tampa da privada era fechar a ligação da casa com o esgoto da rua, disse apenas: “Sim”. “E a porta do banheiro?”, emendei. Foi quando ela entendeu que uma nova mania havia entrado em cena. “Mais uma mania? Não basta a tampa da privada, agora também tenho que fechar a porta do banheiro?” Não era hora de entrar numa explicação técnica e dizer que, se fechar a tampa da privada era uma coisa boa, então fechar a porta do banheiro devia ser o complemento ideal, como o mel sobre a torrada com manteiga. Ao notar que o tom de voz dela já se elevava, e tendo alguma noção do perigo, apenas disse, da forma mais doce que consegui: “Eu gostaria que você fechasse a porta também”, e me enfiei um pouco mais no edredom, esperando pelo impacto do corpo dela no meu, sempre uma boa razão para acordar de madrugada.

Na manhã seguinte, quando abri os olhos, ela já estava no banho. Comecei então a fazer a primeira coisa que faço antes de levantar: catar cabelinhos na cama. Mulheres razoavelmente cabeludas perdem muitos fios durante a noite, e como acho que cabelo só não é nojento quando fixado ao couro cabeludo, gasto muitos minutos a catá-los pelo lençol e pelas fronhas antes de me levantar e arrumar a cama. “Deixei uns fios de cabelo ao lado dos livros”, disse meu objeto de fixação ao voltar do banheiro enrolada em uma toalha e abrindo a porta do armário para escolher o que vestiria. Embora tenha demorado a entender por que faço isso todas as manhãs, hoje ela é capaz de agrupar um chumacinho de fios e deixá-lo num canto para que eu o recolha. Agradeci a delicadeza e continuei a catação sabendo que deveria apressar o ritmo porque cafés da manhã são mais uma mania: sou eu que preparo, e sou eu que, depois, arrumo a cozinha e lavo a louça. A mania de organização, arrumação e limpeza me obriga a cuidar das coisas da casa e, muitas vezes, acaba me fazendo lavar, acidentalmente, uma louça que ainda está sendo usada ou guardar uma roupa que ainda será vestida. Mas meu objeto de devoção já não reclama nem critica, apenas abre o armário e pega um novo copo ou resgata a calça já pendurada.

“Eu amo você”

Na correria para catar todos os fios, um ritual delicado e que exige máxima atenção, já que muitos deles são fininhos e escapam mesmo depois de fisgados, e é preciso reencontrá-los, não notei que estava sendo observada. “Eu amo você”, disse meu objeto de afeição rindo enquanto eu, de quatro na cama, acabava de pegar os cabelinhos soltos. Não tive tempo de responder porque ainda havia muitos fios perdidos, então apenas virei o rosto, sorri e voltei à catação.

Pouco depois, enquanto ligava a máquina do café, cortava o melão, fazia os ovos mexidos e as torradas, e meu objeto de obsessão acabava de se arrumar no quarto, pensei que já teria sido bom demais encontrar alguém que respeitasse minhas manias, mas viver com quem tenha aprendido a amá-las é simplesmente a maior de todas as sortes do universo. Então, sozinha na cozinha, sussurrei a resposta que ficou faltando: eu também te amo.

* A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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