Plim, plim

Como um erro ao vivo mudou a vida de nossa colunista

por Milly Lacombe em

O primeiro erro em rede nacional de TV a gente nunca esquece. Era uma tarde fria e ensolarada quando cheguei aos estúdios da Rede Globo em São Paulo e estacionei meu Cliozinho preto em uma vaga. Andando para a porta do prédio, tirei o crachá do bolso e passei o objeto plastificado pela catraca como fazem todos os funcionários da poderosa emissora. 

Meses antes, eu havia sido contratada como “comentarista esportivo”, título que deixaria meu pai, que me fez gostar de futebol, muito orgulhoso. Vestida de pioneirismo e pompa, andava imponente pelos corredores. Era, afinal, a primeira mulher a comentar futebol na maior emissora da América Latina, talvez a primeira mulher a fazer isso no mundo, quem sabe? Mérito da Globo, sempre tão careta e conservadora, peitar a opinião pública chamando uma mulher para se misturar a um meio historicamente machista, abrutalhado e misógino. E, se nem todos me queriam ali – como não escondiam –, havia muitos que me tratavam como “mais um membro da turma” e me faziam não dar bola para as piadas sexistas contadas em público com o claro objetivo de me ofender e diminuir.

Logo depois de ser contratada, durante um papo informal com a chefia, soube que meu lesbianismo não deveria entrar em campo, um alerta que achei justo porque não me pediam que mentisse a respeito dele, apenas me lembravam que já era suficientemente revolucionário ter uma mulher comentando futebol na TV e que trazer minha homossexualidade para a festa talvez fosse colocar gente demais na bagunça. Eles tinham razão, até porque, como lembraram, para falar sobre a experiência de ser gay já havia a coluna na Tpm

Amparada pelo conhecimento sobre o jogo – fruto da infância ao lado de um pai que me fez crescer nas arquibancadas do Maracanã e de um casamento com a mulher que mais entendeu de futebol entre todos os seres humanos que já existiram –, fui conquistando espaço, fãs e status. 

Na rua, era reconhecida e tietada. Nas festas era o centro da atenção, uma experiência exótica para um bicho com baixíssima ginga social como eu, e que até ali era sempre aquela que ficava meio de canto em eventos. Dentro da emissora me diziam que o próximo passo seria falar de futebol nos jornais da casa. Muitas idas ao Rio passaram a fazer parte da semana, e algumas entradas no Esporte espetacular também. Pessoas famosas me mandavam e-mails elogiosos e cheios de incentivo, dizendo que adorariam me conhecer pessoalmente. 

De repente, sobre mim havia muitos olhares. E se é o olhar do outro que nos faz existir, o olhar de muitos outros nos faz supraexistir; dependendo do dia, uberexistir. E foi assim, como uma super-heroína moderna, uma conquistadora de territórios, a mulher que dava autógrafos na rua numa quarta-feira modorrenta qualquer no posto de gasolina, que cheguei para fazer, ao vivo, o programa daquela tarde de agosto de 2006 sem saber que ele marcaria o começo do fim de minha experiência em TV. 

A mistura de arrogância e ignorância é normalmente fatal, mas ao vivo e em rede nacional de TV ela, antes de matar, faz com que você passe bastante tempo estrebuchando em praça pública. Se errar, em qualquer circunstância e mesmo que apenas nós mesmos saibamos, já é experiência embaraçosa, imagine errar sob o testemunho de milhões de pessoas. Por isso, quando, movida pela certeza de que eu era uma poderosa estrela da TV, falei que o goleiro do São Paulo havia falsificado uma assinatura e ele entrou por telefone e ao vivo para me esculhambar. Cruzei uma fronteira sem volta. Na saída do estúdio já havia pessoas me esperando para dizer que eu estava em todos os portais e noticiários e que o bicho estava pegando pro meu lado. O celular começou a tocar sem parar, e a caixa de mensagens explodiu de tantos e-mails – e nenhum deles era minimamente elogioso. A sorte de principiante fez também com que aquele fosse o primeiro ano que um troço chamado YouTube estava começando a ser fartamente usado, e, graças a ele, meu erro nunca mais parou de acontecer. 

Ao nos depararmos com o fracasso a primeira reação é sempre a de tentar culpar alguém, ou uma circunstância, ou o alinhamento inadequado entre Marte e Júpiter. E eu teria mil histórias de bastidor para contar e, assim, justificar meu tropeço – mas elas só serviriam para tirar o peso do erro, e erros precisam ter peso para conseguirem ensinar alguma coisa. Quando finalmente paramos de tentar culpar terceiros, vem a vergonha, seguida da culpa, da reclusão e da vontade de pegar um cometa para Cassiopeia. 

Quase dez anos depois fica fácil perceber que ter me suicidado ao vivo em rede nacional de TV foi a segunda melhor coisa que me aconteceu na vida (a primeira dorme comigo todas as noites e, depois de coçar minhas costas na cama de manhã, diz que me ama). Acho que poucos estão preparados para o tipo de fama que faz com que você seja abordado na rua, e para tudo o que vem com ela; e eu certamente não estava. Se minha carreira na TV tivesse seguido forte, não é difícil supor que eu seria hoje uma pessoa insuportavelmente besta e bastante vazia. Nem todos, claro, são imbecis e rasos como eu; alguns conseguem lidar com a fama de um jeito bacana e crítico, mas muitos acabam seduzidos pela crença de que estar na TV, e ser reconhecido na padaria, faz com que você seja um ser humano superior e especial, que merece sim furar uma fila enorme e cheia de meros anônimos para pegar à ponte aérea – como eu fiz um dia. É a potencialização de nossa configuração padrão, aquela que faz com que acreditemos que tudo o que acontece a nossa volta diz respeito a nós mesmos, e às nossas vontades. TV é um meio perigoso porque mexe com a vaidade como nenhum outro, e a vaidade é aquele pecado tão apreciado pelo diabo, a ruína de todos os heróis. 

Mas o que o erro faz por você é oferecer uma dama de companhia: essa diva, a humildade. E um erro em rede nacional de TV oferece humildade em doses industriais. Elas aparecem pela manhã, quando você abre o olho e não quer sair da cama, chegam na hora do almoço, quando seu estado de espírito impede você de comer, e voltam no fim do dia, quando sua moral está do tamanho de um ácaro. Elas aparecem para dizer que somos irremediavelmente iguais, uma noção que a princípio soa chocante e triste, mas depois é espetacularmente libertadora. 

Gosto de pensar que se não tivesse fracassado retumbantemente em minha experiência televisiva não teria lido Proust, e depois relido Proust, nem Marx, nem teria construído uma cabaninha no meio do mato, ou aprendido a plantar, muito menos me atirado para um lado mais alternativo da vida. E gosto de achar que esta mulher de hoje, ainda que cheia de cicatrizes, é mais bonita do que aquela.

A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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