Pé no chão

A estilista de sapatos Constança Basto percorre 850 quilômetros a pé

por Constança Basto em

A estilista de sapatos Constança Basto literalmente desce do salto e encara 850 quilômetros e 32 dias de travessia no Caminho de Santiago de Compostela

Sempre quis fazer o Caminho de Santiago de Compostela. Quando tinha 15 anos, meus pais fizeram um jantar em homenagem a uma amiga – hoje minha terapeuta – que voltava dessa viagem. Nunca vou esquecer de quando abri a porta: vi entrar uma pessoa totalmente ilumi­nada, leve... Essa imagem ficou gravada e o caminho sempre foi uma coisa mui­to especial pra mim. Não achava que seria capaz de fazê-lo, até que, em ju­nho do ano passado, escutei o relato de uma amiga e senti que era a minha hora.
O mais difícil é a primeira semana, quando tudo é novo, a saudade de casa é enorme e as dores no corpo, uma loucura. Me sentia só, achava que não chegaria ao fim, a cabeça me torturava tornando tudo difícil. Contava cada qui­lômetro. Essa sensação durou uns dez dias. Mesmo passando por momentos difíceis, experimentei coisas incríveis como receber ajuda de pessoas des­co­nhecidas. Aos poucos, conforme os dias fo­ram pas­sando, fui sentindo uma força tomar conta de mim. Então comecei a aproveitar aquela oportunidade fan­tástica de ficar comigo e me redescobrir. É im­possível descrever a alegria de ver sua ansiedade desaparecer e de apro­vei­tar cada instante. Você se dá con­ta de que tudo na vida está certo do jeito que está. Tudo fica simples.

Escolhi fazer o caminho francês. Saí de Roncesvalles, a primeira cidade na Es­panha depois da fronteira com a França, a porta do caminho em solo espa­nhol. Percorri tudo a pé, andava uma média de 30 quilôme­tros por dia. No começo, sentia muita dor nos pés e a mochila pesava demais. Fui pegando o jeito, aí comecei a andar mais e mais rápido. Che­guei a cra­var 40 qui­lômetros nas últimas semanas, numa média de nove horas por dia. No total, percorri 850 quilômetros em 32 dias – e cruzei mais de 140 vilas e ci­dades.
É difícil falar de todos os lugarejos, mas não deixaria de fora a belíssima Er­mita de Santa María de Eunate, que atravessei na primeira sema­na e é um dos pontos sagrados do roteiro. Fica no trecho entre Pamplona e Puenta La Rei­na, em território espanhol, e possivelmente foi construída pelos templá­rios. Lá existe um albergue pequeno e simpático para quem quiser descan­sar.

No quinto dia de caminhada, exausta, cheguei a Estella, uma cidade muito especial. Meus pés doíam, estava bem machucada. Quando saí para jantar, avistei um posto da Cruz Vermelha. Foi muito interessante a experiência, os voluntários me receberam com um abraço caloroso e me deitaram numa ma­­ca, num ambiente com luz baixa, ao som de mantras e cheirinho de incenso. A voluntária olhou no fundo dos meus olhos e a primeira coisa que disse foi: “O seu corpo está se comunicando com você o tempo todo, o que ele tem a lhe dizer?”. Respondi: “As pedras do caminho me machucaram muito”. Quando disse isso, nós duas rimos e ali comecei a entender muita coisa. Seu dia­gnóstico: “Descanse, cuide do seu corpo, respeite o seu ritmo!”.

Acabou a culpa
Quilômetros de caminhada depois, cheguei a Burgos, a segunda maior ci­da­de do caminho e que merece destaque. Lá está a catedral de San­­­ta Maria (gó­ti­ca, de 1221), além de deliciosos restaurantes que servem ta­­pas. Burgos é cheia de vida e possui todos os serviços de que o peregrino preci­sa: correio, farmácia, lavanderia, lojas de equipamento, restaurantes, sorvete­rias...

Lá pelo 15º dia, fiz a caminhada de Car­rión de los Condes até Calzadilla de la Cue­za – uma das mais puxadas, 19 quilôme­­tros de infindáveis planta­ções de milho, sem uma sombra ou fonte de água sequer. Ou­tra experiên­cia úni­ca – e tal­vez um dos momentos mais es­perados – é a tra­­vessia dos mon­tes do Silêncio, cru­zan­do a mítica al­deia de Foncébadon, para, fi­na­l­­mente, che­­gar ao mar­co sagrado da Cruz de Hier­ro, ponto mais alto do ca­mi­nho. Lá de­po­si­tei a pedra que trouxe de casa, sim­boli­zan­do as culpas que se carrega na vida. A sensação de leveza, li­ber­da­­­­de e redenção é real. Dali em diante, flu­­tuei.
A subida do Cebreiro também foi me­mo­rável. Todos os peregrinos temem e es­pe­­ram ansiosos por esse momento. “Tal­vez seja a mais bela e a mais difícil etapa do caminho”, dizia meu guia. Saímos da pro­víncia de León e entramos na verde re­gião da Galícia. A partir desse ponto co­me­ça a con­tagem regressiva para San­tia­go: 152,5 qui­lômetros (o equivalen­te a cinco dias de ca­minhada). De 500 em 500 metros po­­dem­-se ver totens com a mar­ca­ção exata de quan­­tos quilômetros ainda faltam.

Durante o caminho, não marcava en­con­­­tros nem trocava telefones. Vivia o mo­­men­to e confiava. Quando reencontrava pes­­­soas queridas sabia que ainda tínhamos coisas a viver juntos. Fiz amigos ines­que­­cí­veis que foram grandes companhei­ros nes­­­­sa jor­­nada. Conheci a empresária po­lo­ne­sa Ka­­­tar­zy­na, 31 anos, no meio de uma tri­lha. Nos tor­na­­mos grandes amigas. Fiz ami­zade também com Thomas, um ale­­­mão de 40 anos. Co­nhe­cemo-nos num al­ber­­­gue, ele dor­­mia na cama de baixo, ron­ca­­va como uma bri­tadeira. Me ensinou li­ções para a vi­da. Ele coordena uma fun­da­ção na Ucrâ­nia que cui­­da de crianças que fo­­­­ram aban­do­nadas após o nas­ci­men­to. Sa­­­­be como escolhe as fun­cionárias? Pelo ca­­­­­lor dos abraços. Se­gun­do ele, para formar uma criança, basta ensiná-la a amar a si mes­ma, a vida e aos outros à sua vol­ta.

Amigos para sempre
Também sinto falta da francesa So­­­léne e do clop clop de Cir­­rus ­– ela fez o cami­nho a cavalo. O também fran­­cês Ale­xis, 19 anos, canta­ro­­­lava sempre, e, uma noite, quando jan­tá­va­­mos, alguém lhe perguntou por que fa­zia o ca­minho sendo tão jo­­vem. Ele disse: “Me perdi de mim mesmo. Vim me re­en­con­trar”. Eu sentia o mesmo. Fi­camos mui­to pró­ximos e, como cada um ia num ritmo, com­binamos o encontro fi­nal em San­tia­go, na catedral, pa­­ra a mis­sa de Ação de Gra­ças. Que emo­ção es­se encontro. E esse é um caminho ao encontro de si mesmo, do potencial que exis­te em cada um. Foi a melhor coisa que fiz na vida.

DICAS

A primeira coisa a fazer quando se decide fazer o caminho é procurar a Associa­ção dos Amigos do Caminho de Santiago de Compostela em sua cidade e obter a cre­­dencial que dá direito aos refúgios. Se­m ela, não se pode usá-los.

Preste atenção às setas amarelas que norteiam os peregrinos, elas estão por toda parte, é praticamente impossível se per­­der. É importante ter um cajado para subir e descer montanhas – ele vai se tor­nar parte de você.

O caminho deve ser feito em total so­lidão, não é uma viagem para se fazer com amigos. Use esse tempo para descobrir que você é a sua melhor companhia.

A trajetória deve ser feita sem tirar os pés do chão, portanto, resista às tenta­ções de caronas, táxi etc. Se estiver exausta ou machucada, pare por um dia e descanse. O importante é caminhar e não che­gar!

COMO IR
Fui de TAP, fiz Rio de Janeiro-Lisboa (a par­tir de R$ 2.608), Lisboa-Pamplona (a partir de R$ 1.333) e, de lá, peguei um táxi pra Roncesvalles (mais ou menos duas horas). Sugiro não co­mer nada em Pamplona, pois a estrada pa­ra Roncesvalles tem mui­tas curvas e mesmo eu, que não enjoo nun­ca, passei mal. Marque a volta para, no mí­ni­mo, 32 dias de­pois (eu marquei para 38). Quando se che­ga a Santiago, a coisa que vo­cê mais quer é encontrar os amigos, ce­lebrar a conquista e aproveitar a cidade, que é uma festa! Na volta, peguei um trem de Santiago até Por­to, em Portugal (pode ser ônibus que é até mais rápido) e fiz Por­to-Rio (a partir de R$ 1.771) sem escalas!

ONDE DORMIR
Dormir nos albergues destinados aos pe­regrinos é essencial para viver a expe­riência do caminho. É lá que vão acontecer os encontros com gente do mundo todo. Muitos refúgios são gratuitos e o pe­re­grino deixa o quanto pode para sua ma­nu­­ten­ção. Os outros ficam na faixa de 5 eu­­ros. Importante: na primeira noite no al­ber­gue de Roncesvalles pegue uma lista com todos os albergues que estão abertos nessa temporada. À noite, eu sempre olhava a lista e via quais eram as cidades com albergues para calcular onde dormi­ria no dia seguinte.

ONDE COMER
Como saía antes das 8 horas do albergue, tomava café no primeiro bar que achava, com torradas e chá. Existem opções como tortillas e bocadillos. No almoço, não pa­rava. Levava algo na mo­chi­la pra beliscar, um mix de nuts, um chocolate – algo que alimentasse, mas que não pe­sas­se. O essencial é manter o cantil sem­pre cheio, há várias fontes de água potá­vel pe­las tri­lhas. À noite, jantava bem! O jantar é sem­pre uma alegria, os peregrinos co­mem todos juntos. A comida é básica, tem sem­pre uma opção de salada ou mas­sa mais um tipo de carne e sobremesa. Além de mui­to vinho.

Tpm +

Veja as dicas completas de Costança e sua seleção do que levar nesta viagem:

O QUE LEVAR
Leve o mínimo possível. O ideal é que a mochila pese 10% do seu peso. Itens essenciais: 1. Mochila com amarrações no peito e na cintura. 2. Um sleeping bag leve. 3. Um tênis especial para trecking (seu tênis de corrida não serve). O ideal é que seja leve e dois tamanhos maiores do que seu pé, ele vai inchar! Levei um da marca North Face, foi perfeito! Faça caminhadas antes de viajar para amaciá-lo. 4. Uma calça e um short bem leve de fácil lavagem e secagem rápida. 5. Três camisetas de manga curta e uma de manga comprida, todas dry fit. Algodão nunca, não seca e pesa horrores! 6. Um bom anorak que seja impermeável, bloqueie o vento, mas não esquente muito. 7. Uma Havaiana. 8. A toalha de banho tem que ser uma fralda daquelas bem grandes. Na Associação eles vendem uma ótima, não se assuste, elas secam superbem o corpo e logo depois estão secas! 9. Protetor solar, um bem forte para o rosto e não esqueça das mãos, braços e pescoço, ficamos no sol o dia todo. 10. Um boné de abas largas! 11.Um par de óculos escuros!

Leve todas as coisas separadas em sacos plásticos, pois, se a chuva lhe pegar de surpresa as roupas e os documentos não molharão. Importante: ao invés de colocar todas as camisetas num pacote, ou todas as meias em outro, coloque o conjunto de roupas necessárias para o dia por pacote, assim, você puxa um saco e vai se trocar, não vai ficar horas remexendo os sacos para achar tudo que precisa. Além de fazer um barulho terrível, normalmente o albergue está escuro.

Antes de sair leve o tempo que for preciso para ajeitar o tênis no pé, eu sempre enfaixava cuidadosamente cada dedo com esparadrapo micropore e passava talco nos dedos, isso evitava bolhas e atritos. Sempre que sentir algo incomodando dentro do tênis, pare e ajeite, mesmo que seja complicado tirar a mochila e descalçar o tênis. Faça isso, seu pé vai lhe agradecer ao final do dia, são essas pequenas coisas que podem causar feridas, bolhas e mau jeito nos pés.

Leve um antiinflamatório e relaxante muscular que esteja habituado a usar, as dores às vezes são insuportáveis e isso vai ajudar a relaxar e dormir.

SAÚDE

O Brasil e a Espanha possuem um acordo internacional de Previdência Social. Se você contribui para o INSS aqui, tem direito a usar a rede pública de hospitais por lá, mas, para isso, é necessário tirar a papelada que prove que você é contribuinte. Além disso, é sempre bom levar uma receita médica para comprar alguns medicamentos que possa precisar.

À noite, se a dor apertar muito, uma boa dica é pedir ao hospitaleiro uma bacia com água gelada e jogar sal grosso e vinagre. Deixar os pés relaxarem ali por meia hora realmente alivia a dor. Fazer uma boa massagem nas panturrilhas e nas coxas é essencial. Cuide do seu corpo com carinho, essa é outra lição importante do caminho: se você não cuidar de si mesmo, ninguém vai!

Crédito: Constança Basto
Crédito: Constança Basto
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