Parada número dois
Fazer cocô grudado em um desconhecido, dentro do avião, pode parecer filme
Sabia que um dia isso iria acontecer... Pegando de dois a quatro aviões por semana, nada é mais humano do que ter vontade de fazer cocô em uma dessas viagens... Já estava sentada na poltrona quando chamei a comissária para relatar o meu desejo. Ela me ofereceu uma cadeira de rodas da companhia aérea, pois a minha já estava no compartimento de bagagens. Sair do avião para ir ao banheiro no aeroporto seria arriscado demais, e tive certeza de que me largariam em São Paulo. Além do que, cada transferência vem com um aperto na barriga e fazer poltrona-cadeira, cadeiravaso seria uma longa e arriscada distância.
Desde que sofri o acidente, nunca mais tinha entrado num banheiro de avião. Compreensível, devido ao tamanho reduzido para uma pessoa de porte médio. Eu nem sou de porte médio e, agravante, não consigo ir sozinha e, mais agravante ainda, tivemos que ir em três. A Gil me abraçando pela barriga e a comissária levando minhas pernas. Esse é o jeito que entro e saio do avião.
Dentro do toalete foi quase um show cômico. Primeiro que adquiri intimidade com a moça em cinco minutos de convivência, já que a Gil me levantava e ela tinha que tirar minhas peças de roupa. E, se considerarmos que fazer número dois na frente de alguém já não é corriqueiro, grudada em alguém desconhecido parece filme. Vida de tetra tem muito dessas coisas... Outro dia um garçom que eu acabara de conhecer ajudou o Melo a vestir o meu casaco. Uma vez, na praia, várias crianças me perceberam embaixo do chuveiro e dividiram bucha, sabonete e xampu, num trabalho em equipe que mal tive controle. Isso traz uma humanidade indescritível às relações, sem contar a satisfação de conseguir fazer as coisas com poesia e sem movimentos.
Ir ao banheiro para mim é algo prazeroso! Acontece que muita gente com deficiência fica refém da própria necessidade fisiológica, não saindo de casa por medo de precisar usar um toalete e não encontrar um adequado com almas disponíveis a ajudar. Geralmente, quando isso acontece comigo, eu opto pelo meu carro, por causa da dificuldade de achar espaços acessíveis. Além do mais, seria surreal sair perguntando na rua: “Oi, você poderia me ajudar a fazer cocô?”.
Momento íntimo?
Com três pessoas grandes dentro daquele banheiro, a porta não fechou. Tivemos que recrutar uma quarta pessoa para segurar a cortina e impedir que outros passageiros transitassem por ali. O processo demorou uns 40 minutos. Pois é, esse momento tão íntimo, porém impessoal, não disse respeito só a mim e às três participações especiais, envolveu cerca de 170 passageiros, sem contar funcionários, que aguardavam a decolagem. E ainda aqueles que ficaram esperando em Brasília para embarcar para o próximo destino da mesma aeronave. Simples, né? O mais incrível é que todo banheiro de avião tem o símbolo internacional de acessibilidade. Embora os funcionários tenham sido impecáveis, o mundo não foi feito para quem tem uma deficiência.
Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br