Para mudar de vida

Tomadas, cantos e benjamins não importam quando se está prestes a realizar um sonho

por Milly Lacombe em

 Você me pergunta quantas tomadas eu quero na sala e eu digo que não sei. Você faz cara de poucos amigos e eu tento me concentrar para pensar sobre a pergunta. Estamos no meio de um apartamento em obras, pó e pedras por todos os lados, pedreiro, marceneiro e suas respectivas equipes indo e vindo, o eletricista debruçado sobre o parapeito da janela fazendo contas. E eu, parada no meio desse caos, tento pensar. Ninguém nunca me fez essa pergunta antes. Nunca pensei, de verdade, sobre quantas tomadas quero na sala. Nunca, aliás, construí uma casa com outra pessoa. Tudo o que fiz até hoje foi entrar com uma mala em casas já construídas, com todas as tomadas já alocadas. Mas, pelo seu olhar fulminante, entendo que agora é necessário pensar em quantas tomadas quero na sala. Faço cara de quem está raciocinando, querendo ganhar algum tempo, e você, que não precisa ganhar tempo algum, diz:

– O sofá vai ser bem aqui, tá vendo? Então, quantas tomadas aqui? Uma de cada lado?

E eu, aliviada com o sopro, digo que uma de cada lado está ótimo.

– Mas e se você estiver sentada aqui e quiser ligar o computador e carregar o celular, por exemplo? Uma é pouco. Tá vendo? Por isso preciso que você me ajude a pensar. Quatro então? Duas de cada lado?

Pela minha cabeça passa a palavra benjamim, mas eu digo apenas:

– Isso, quatro está ótimo.

– E os circuitos? Como você acha que devemos fazer?

Não sei do que você está falando, mas sei que não é hora de confessar minha ignorância. Então, me entrego ao jogo.

– Não sei. O que você acha?

– Acho que temos que poder acender a luz da sala do corredor. E temos que poder apagar a do corredor quando estivermos na sala.

– Isso. Isso.

– O que mais?

– Assim está ótimo, digo.

– Não acabou. Você pensou como vamos fazer no quarto?

– Pensei e cheguei à conclusão que eu quero ter luz no quarto, digo, sabendo que estou fazendo uso do que meu pai chamaria de a coragem da ignorância.

Você me eletrocuta com o olhar. Tento matutar como poderia ser o quarto no quesito iluminação, mas, antes que alguma ideia brilhante acenda, você diz:

– Temos que poder apagar a luz do quarto quando estivermos deitadas na cama. Estamos falando de circuitos independentes, entende?

Não entendo, mas depois que você explica eu penso: “Claro”. Óbvio. Como não tive a astúcia de dizer isso antes? Aí você diz, baixinho, que não gostou do eletricista. “Como assim?”, pergunto. “Não gostei da energia dele”, você responde. “Bom, se a energia do eletricista não é legal, então temos um sério problema”, digo. Você não ri da minha piada. No lugar de rir, diz:

– É hora de escolhermos a cor das paredes. Que cor você quer?

Eu realmente não me importo, mas não sei como dizer isso sem fazer parecer que estou dizendo um “tanto faz” meio “foda-se”. Porque, de verdade, não é um “tanto faz” meio “foda-se”. Eu simplesmente não sei, nunca pensei sobre a cor das paredes e agora, sob pressão, não terei nenhuma ideia genial.

Você está me olhando, aquele bico de poucos amigos, e eu sei, porque conheço você há quatro anos, que é uma boa hora para dizer alguma coisa, qualquer coisa. Quero dizer que tanto faz, porque tudo o que me importa é construir uma casa com você. Quero dizer que nunca fui tão feliz como sou com você. Quero dizer que meu sonho mais impossível está prestes a se realizar e que, por isso, nada mais importa. Penso em falar tudo isso, mas o barulho das paredes vindo abaixo é colossal. Ainda assim, tento. Mas, bem quando estou prestes a gritar, o pedreiro passa por mim carregando um saco de detritos e o pó me faz engasgar. Não posso mais falar, mas você ainda quer uma resposta. A única que sai de mim, aos sussurros e entre tosses, é “tanto faz”. E você me apedreja com o olhar.

Frações de segundos
Saímos dali, andando pela rua ao anoitecer, e você está de bico, possessa com o que considera ser displicência minha. Precavida, vou andando um pouco atrás, meio passo talvez, mas o suficiente para constatar sua imponência. Não me canso de olhar para você. Não me canso de ver como você é alta, forte, bonita. Sei que ainda fico meio abobada ao seu lado, mas não sei fazer diferente. Não sei, e esse talvez seja o problema, ser diferente. Então, digo a única coisa que me passa pela cabeça, a única coisa que é, para mim, realmente uma certeza:

– Eu te amo.

Você para de andar e olha para trás. Depois de uma fração de segundos, você sorri e me abraça. E nessa hora eu sei que tudo vai ficar bem. Mesmo que, no fim, eu tenha que comprar um benjamim.

* A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

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