Para Carolina Dieckmann
Desculpa, amiga, você é uma casa com estrutura de ferro e passarinho nas árvores
Você tinha 17 anos, gostava de ver TV aos domingos e morava em Santa Teresa. Eu, com 20, estudava na PUC, frequentava o Estação Botafogo e vinha de um grupo de teatro cabeça. Você tinha virado atriz por acaso, acho que por conta de algum concurso, e eu nunca ganhei nem bingo. Eu era rata do bar Lagoa e você fazia peça no Vanucci. Você fazia novela e eu queria ser cineasta. Seríamos reprovadas na primeira fase de qualquer teste vagabundo de compatibilidade, mas eu me apaixonei por você de cara.
Primeiro porque você era linda, e tinha bochechas de menina. Depois, porque você adentrava o ensaio e tudo se iluminava ao redor. Você carregava um sol na cabeça, ao mesmo tempo em que parecia aquele garoto que senta na última carteira da escola. Você fazia ginástica olímpica. Você gostava de dormir. Você dançava. E você era livre, independente e corajosa, praticamente meu avesso.
Mas você gostava de língua de gato e batata frita, e eu também. Você gostava de Heróis da Resistência, e eu também. Você gostava de comprar roupa, e eu também. Você era uma adolescente velha, e eu também. E alguém já disse que o teatro tem um deus só pra provocar amizades. Pois bem. Nossa peça estreou e eu não lembro de quase nada do processo, mas vejo nas fotos daquela época o exato momento em que você passou a fazer parte de mim, tendo me dado um vale-felicidade que dura até hoje. Eu vi que eu gostava de você pelas diferenças. E que nosso encontro era sério e preciso.
A gente entrou em turnê e passou a dividir quarto. Você já passava uns cremes incríveis, e me ensinou a fazer mala e planilha de gastos, e fez de mim uma atriz mais divertida e eu fui me dando conta de que não seria mais possível viver sem você. Tínhamos a vida inteira pela frente e seguiríamos juntas, uma abrindo o caminho pra outra. Na alegria e na tristeza.
Aí você casou com um cara 20 anos mais velho sob uma lona de circo e me chamou pra ser madrinha. E, como se não bastasse, você resolveu ter filho. Isso com uns 19 anos. Meu Deus, aonde ela vai com tanta pressa? E eu ao teu lado, tentando inultilmente te alcançar. Você sempre foi trapezista.
Depois você separou, e outra vez te vi de noiva, grávida e feliz ao lado do teu amor de infância. E ali eu decidi fazer igual. E, no teu encalço, como uma garota de 11 anos imita a melhor amiga, entrei na igreja de branco e fiz festa e tive filhos e depois fizemos um filme e viajamos juntas, e tudo isso foi montanha-russa pra mim e pedalinho da Lagoa pra você. E nós duas juntas, saúde e doença.
Até o dia em que a gente se separou, em uma tarde triste em Ipanema, em que fui dura e injusta com você.
Você, que atravessava a cidade sozinha de madrugada aos 18. Você, que sempre riu da minha ignorância eletrônica. Você, que me levou pra fazer exame de tiroide. Você, que compra igual pra mim e pra você.
Me desculpa, minha amiga. Que nosso desentendimento sirva pra aprofundar o amor, como aconteceu em São Chico, e também naquele quarto de hotel em Londres, quando nos deixamos modificar profundamente uma pela outra, convivendo 24 horas por dia. Coisa mais bonita não há.
Porque o tempo foi passando e eu já não tenho mais nada em comum com aquela garota de 20 anos que fazia Confissões de adolescente, a não ser meu amor por você.
Porque você, Carol... você é uma casa com estrutura de ferro e passarinho nas árvores. Um lugar do qual eu nunca quero sair, onde eu moro e sou feliz, e de onde humildemente te ofereço meu ombro e minha sincera amizade.
Amizade forte e verdadeira, que começou quando você tinha 17 anos, gostava de ver TV aos domingos e morava em Santa Teresa.
Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com