Paladares exigentes
Comida é uma forma de diálogo com o mundo, com os outros e com a vida. E a satisfação não é a barriga cheia, e sim a alma preenchida
Há alimentos aos quais atribuímos poderes malignos, que matam ou adoecem, ou benignos, que curam, rejuvenescem ou são afrodisíacos. Cada época tem suas crenças. Não são somente os homens que podem ser conquistados pelo estômago, ou podiam, porque muitas mulheres hoje não sabem fritar um ovo (eu inclusive). Mulheres também são sensíveis às seduções da mesa, jantar romântico faz parte dos rituais da conquista. Além disso, o que entra e sai do corpo é um tema sobrecarregado. Nosso ventre pode ser abrigo de fetos e vaza sangue regularmente, inflamos e murchamos à mercê dos hormônios. A obsessão pelo peso talvez seja uma resposta possível a esse corpo mutante. Talvez no controle da boca domaríamos algo dessa fisiologia cheia de eventos.
Comer é fonte de prazeres, pânicos e crenças. Todas as religiões incluem tabus, ritos ou oferendas alimentares. Os deuses também têm seu paladar. Já os mortais, desde cedo mostram suas exigências. A cólica gástrica dos bebês é uma das primeiras experiências de conflito com a mãe, e é desconcertante para ambos os membros da dupla. Afinal, como pode doer tanto a barriga daquela criaturinha que só toma leite? A mãe se martiriza, fica escolhendo alimentos que não envenenem seu leite, o bebê sofre, quer aliviar o mal-estar mamando e só consegue ter mais dor. Na fase seguinte vem a descoberta da independência: depois que aprendeu que só abre a boca quando quer, não há aviãozinho que convença o pequeno de que ele deve comer mais e aquilo que nós escolhemos. Comida é sempre uma forma de diálogo com o mundo, com os outros e com a vida, raramente fome. A satisfação não é a barriga cheia, é a alma preenchida, está além da saciedade.
Comendo lembranças
“Me surpreenda!”, exige um afetado crítico gastronômico, da mais pernóstica das culinárias, a francesa. A cena está num recente filme infantil (sucesso entre adultos), Ratatouille. A solução encontrada pelo
ratinho cozinheiro é oferecer-lhe uma receita popular, que emociona o paladar do exigente gourmet. Ao reencontrar o prato de legumes que sua mãe lhe preparava, Anton Ego, o implacável crítico, submerge nas
catacumbas da sua memória, como na famosa cena das madalenas de Proust. Comida, conclui-se, sempre será uma evocação infantil lapidada pela vida. Por isso, como crianças, somos todos chatos para comer. Haja paciência!