Outros sentidos

Duas visitas emocionantes me lembram que não somos feitos apenas do que podemos fazer e ouvir

por Redação em

 
No fim da estrada de M’Boi Mirim, em São Paulo, as árvores vão se adensando, a temperatura cai e o céu e o sol brilham com mais intensidade. Lá, naquele clima de montanhas, alcançamos uma rua ensolarada que, de um lado, tinha casas muito simples e, do outro, bosque. Como já é usual do meu destino, encontrei nessa rua uma só pessoa que, em frente a uma igreja, sentada numa cadeira de rodas, recebia no rosto os raios do pôrdo- sol.Parei o carro e contei que eu também não me mexia. O homem conhecia o endereço para onde eu estava indo, me deu um panfleto de Testemunha de Jeová e disse que Jesus disse que daqui a alguns anos não haverá mais pessoas com deficiência!

Segui para a associação Água Cristalina, onde um grupo de pessoas me aguardava na porta. Raimundo veio me abraçar, dizendo estar arrepiado de emoção. Entramos por uma rampa longa, translúcida e com cheiro de piscina. Pessoas sorridentes demonstrando satisfação, barulho de atividades na água, vozes e risadas. Aquilo tudo mais o Raimundo com sua energia contagiante de criança que vai ser feliz pra sempre me transportaram para o mundo de Água Cristalina.

Numa sala repleta de jovens com paralisia cerebral em constante movimento em suas cadeiras, muitas mães, funcionários e voluntários me receberam com amável cortesia. Ainda fui prestigiada com uma bela família de anões que me esperou para cumprimentar. A agitação alegre dentro da piscina com fisioterapeutas e mães trabalhando com seus filhos fizeram-me sentir o lado doce e subjetivo da sustentabilidade. O Raimundo transformou sua própria casa em piscina para atender 200 pessoas por dia. Isso foi fruto da própria experiência positiva com sua filha também PC (como chamamos quem tem paralisia cerebral).

Junto com Raimundo, eu presenciava a todo momento explosões de felicidade dirigidas a ele.Tomei um banho de contentamento provocado pelas pessoas aquáticas. Ali, a maioria era quem tinha paralisia cerebral e movia-se, expressava-se e desenvolvia- se na onda da água – e do afeto!

Curiosamente a iluminação perto da piscina era tão forte que parecia luz do sol, e, sob esse holofote, o cenário era de fábula poética, e os atores, perfeitos. Quis entrar nessa água.

Outro dia, senti essa mesma vontade de mudar os papéis no mundo. Fui convidada pelo meu amigo Paulo Vieira para ir a uma festa junina de surdos. Cheguei à escola municipal Santa Terezinha, no bairro paulistano da Saúde, e encontrei 1.500 pessoas festejando. Maioria esmagadora surda. Um alvoroço de mãos para lá e para cá, paquera a distância, música, jogos, sons, muita expressão facial e corporal. Nessa noite, além de eu ter descoberto que surdos em festa não têm segredos, ainda deparei com uma leve frustração de não poder falar com as mãos igual a eles, já que não mexo os braços.

Agradeço a Raimundo e Paulo por nos mostrarem que o ser humano é muito mais do que aquilo que fazemos e ouvimos.
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