Os filhos que a vida dá

Mesmo os que não nascem da barriga da gente têm o poder de virar do avesso um domingo

por Milly Lacombe em

Abro os olhos e lembro que é domingo. Meu amor se vira na cama, joga parte de seu corpo sobre o meu e me entrelaça com uma das pernas. Agora sou um travesseiro, papel que me cai bem. Prensada pelo corpo de meu objeto de devoção, que dorme fazendo aquele barulhinho de respiração que me deixa abobada, olho pela janela e contemplo as nuvens, o frio e todo o potencial que o dia oferece. A decisão de não ter tido filhos me soa insuportavelmente adequada. Com eles, domingos não comportariam mais o ócio. Aliás, com eles a vida não comporta mais o ócio. Me encho de ânimo e decido que vou preparar um café da manhã calibrado. Um café da manhã de horas e horas, com jornais e revistas à mesa. Uma sensação de prazer me inunda. Depois, sei que vamos nos atirar ao sofá para continuar a ler. E então iremos ao supermercado comprar as coisas para o almoço que ofereceremos a uma amiga. Meu amor quer testar algumas das receitas que aprendeu no curso de culinária nível básico um, e Mara e eu seremos as cobaias. Ainda na cama, sonhando acordada com o domingo perfeito que terei pela frente, ouço o telefone tocar. Meu corpo se arrepia. Quem telefona domingo de manhã? Do outro lado, meu irmão avisa que Antonio está com 40 graus de febre, vomitando, e precisa ser levado ao pronto-socorro. “Mas onde estão os pais dele?”, pergunto, voz trêmula, sentindo a ameaça que cresce como uma sombra sobre meu domingo perfeito. “Fora de São Paulo”, responde meu irmão sem paciência porque sabe que eu sei que minha irmã e meu cunhado não estão por perto. “E você? Você é tio e médico, melhor você ver isso aí do Antonio doente”, digo, quase em súplica. “Também não estou em São Paulo, mas já falei com um amigo no Einstein e ele está de plantão hoje. Pega o Antonio e leva lá.” Desligo tremendo, mais pelo domingo do que pelo sobrinho.

Antonio, supostamente em delírio, está sendo trazido de Campos do Jordão, para onde se mandou com amigos adolescentes durante o feriado. Minha mãe, meu irmão e minha irmã, a outra tia, estão em comunicação constante e decretaram que a responsável pelo menino sou eu, a única boçal que ficou em São Paulo no fim de semana prolongado. Decido ligar para o celular de Antonio, e ele atende com a voz de alguém que está agonizando. Nessa hora, fico um pouco preocupada, mais por ele do que pelo domingo. Mas aí descubro que Antonio passou a noite em uma festa, que bebeu mais do que deveria, e a preocupação dá lugar à irritação. “Antonio, você usou algum tipo de droga? Porque, olha, vou te contar. E me mandaram levar você ao pronto-socorro, tem mais essa, você precisa dizer aos médicos exatamente o que usou, entendeu?”, falo tudo isso com a voz dura e já soando como alguém que eu detestaria ser se fosse mãe: uma relativista moral. “Tranquilo”, ele responde. Sem saber se “tranquilo” quer dizer que ele usou e será sincero com o médico, ou se “tranquilo” quer dizer que ele não usou, me dou por satisfeita. Até porque não saberia lidar com a resposta caso “tranquilo” significasse “usei”.

Combino de buscá-lo na porta do colégio, que era onde a van cheia de adolescentes vindos de Campos pararia. “A que horas você vai chegar?”, pergunto, na esperança de ainda ter tempo para um café, mas quando ele responde “em menos de uma hora” entendo que meu domingo está definitiva e imperialmente contaminado. Meu amor, já de pé, diz que vai ao supermercado sozinha e que toma um café por lá mesmo. “Vai dar tudo certo”, me diz, sem muita convicção na voz. Cabisbaixa, com fome e sem meu café, vou apanhar o doente. Quando a van chega e os adolescentes começam a sair, vejo Antonio, lindo como sempre, mas com uma expressão de tristeza absoluta no rosto. Dou um beijo e um abraço, para espanto dos amigos que sussurraram “eca! 
Precisa amar muito para abraçar e beijar um cara fodido assim”, pego a mochila e o violão e enfio Antonio no carro. Ele deita semidesmaiado no banco da frente. “Vamos para o Einstein para você fazer um exame de sangue”, explico, sem saber se ele está escutando. E então lembro que Antonio tem fobia de agulhas. Em segundos, ele está sentado e aprumado no assento. “Exame? De sangue? Por quê? Estou me sentindo bem melhor. Beeem melhor, olha. Me leva para sua casa, por favor, por favor, Milly.” Ao meu lado, um homem de 17 anos, 1,90 metro e muito mais peludo do que qualquer sobrinho meu deveria ser, transformado em criança de 3 anos. “Não posso. Vão me linchar. O Kiko, a Nonna, a Adriana, todos me mandaram levar você para o pronto-socorro imediatamente.” Mas Antonio ameaça se jogar do carro em movimento, e eu cedo. “Tá! Tá bom. A gente vai para a minha casa. Mas se você morrer eu te mato”, digo, já prevendo a retaliação.

Caos e desespero

Em casa, a cozinha é o cenário de um cataclisma. Todas as louças e eletrodomésticos que um dia compramos estão sobre a mesa, e uma quantidade que me pareceu industrial de alimentos crus agoniza sobre a pia. Eu, minha mania de organização e minha paranoia por limpeza entramos em secreto estado de histeria. Nessa hora lembro que meu objeto de desejo não sabe cozinhar, e que não seria um curso de três semanas nível básico um que a teria transformado em chef. O que deveria ser apenas um domingo de paz e sossego virou um de caos e desespero: a casa de pernas para o ar, minha mulher sem saber por onde começar a cozinhar as coisas que prometeu fazer para o almoço, meu sobrinho com 40 graus de febre sob meus cuidados e uma desavisada convidada que em poucas horas chegaria para o almoço.

Tentando não olhar para o estado da cozinha, o que só agravaria minha hiperventilação, faço um chá de gengibre, encho uma garrafa d’água e dou a Antonio a dose máxima de Novalgina com outra cavalar de própolis. Depois, levo Antonio para minha cama e vou colocar a mesa. De 15 em 15 minutos rompo até o quarto para ver se Antonio continua respirando. Dormindo, agora sua como um personagem de Jorge Amado trabalhando debaixo do sol de verão do sertão baiano. Ajudada por espíritos de luz – não há outra alternativa para ter dado tudo certo na cozinha –, meu objeto de desejo é capaz de preparar e levar à mesa um almoço celestial. Já no final do dia, Antonio vem para a sala, agora mais vivo do que morto. Deita no sofá, coloca a cabeça em meu colo, agradece o carinho e diz que me ama. Nessa hora, quero que ele nunca mais saia da minha casa. Quero amarrá-lo a mim, para sempre protegê-lo do mundo e de qualquer tipo de dor. Quero ligar para minha irmã e dizer que não devolvo. Do sofá, flagro o estado da cozinha, as louças por todos os lados implorando em voz alta para serem lavadas, e a hiperventilação volta. Mas aí vejo Antonio dormindo em mim e nada mais importa. Minha mulher coloca as mãos na testa dele e diz que não tem mais febre. Em seguida, dá um beijo em Antonio, outro em mim e vai arrumar a cozinha, porque um amor de verdade respeita paranoias. E eu fico ali pensando que aquele foi, afinal, um domingo perfeito – e que nem todos os filhos nascem da barriga da gente.

*A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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