O tal do preconceito ao contrário
Ou a inesperada virtude da ignorância e o que podemos fazer contra ela
Lembra quando na escola a gente estudou a revolta da Casa Grande? Aquele dia em que todos os senhores donos de escravos saíram às ruas para dizer que não eram mercadoria e exigir liberdade? E o dia em que os homens – esse gênero que na Idade Média era queimado nas fogueiras do santo Papa toda vez que emitia uma opinião – foram às ruas pedir para terem o direito de votar?
Homens também tiveram que se unir para implorar que houvesse uma lei contra maus tratos que recebiam de suas mulheres, que muitas vezes chegavam bêbadas em casa e desciam o sarrafo neles.
E, claro, não podemos esquecer do histórico dia em que naquela cidadezinha do Texas que não me lembro o nome, dezenas de heterossexuais se uniram para gritar: “Cansamos de ser assassinados por nossa orientação sexual. Basta de heterofobia”. Coitado do homem branco e hétero, esse sujeito que há séculos é desrespeitado.
Não existe o preconceito ao contrário mais ou menos como não existem a sereia, o saci e a mula-sem-cabeça. Não existe porque não se pode alegar que aqueles que sempre dominaram o mundo -- e as leis, e as políticas – foram em algum momento da história oprimidos ou excluídos. A prova que não foram é exatamente essa: esse mundo ainda é o mundo deles. Quem fez esse mundo que hoje desmorona e está afundado em intolerância foi o homem branco rico heterossexual.
Não me entendam mal: não estou maldizendo todo o homem branco rico hétero, claro que não, eu mesma sou cercada por alguns exemplares desse grupo que são lindos e bons e sensíveis. O que estou dizendo é que o mundo, desde que o primeiro grupo de seres humanos se juntou em volta de uma fogueira, é dominado por ele, e que estamos aqui hoje por conta das ações dele. Não houve em quatro mil anos de sociedades nenhuma época, e nenhum país, que tenha deixado de ser dominado pelo homem-branco e rico – e muitas delas pelo branco/rico/fanático religioso.
Justamente para que as minorias e aqueles que durante séculos foram oprimidos – e a história tem toneladas de exemplos – tenham direitos iguais e sejam vistos e reconhecidos são criadas leis de proteção, como a Maria da Penha e a das domésticas, e dias especiais, como o dia da consciência negra, o dia da mulher etc. São ações que visam incluir os excluídos e chamar a atenção para uma verdade absoluta que continua a ser negada para desespero de anjos e arcanjos: somos todos iguais, somos todos uma mesma coisa, somos todos feitos da mesma substância.
Há na política nacional um milhão de representantes desse homem branco-rico-hétero-ultrarreligioso naturalmente, mas o personagem da hora é Eduardo Cunha, recém eleito presidente da Câmara dos Deputados, que entre outras façanhas está empenhado na batalha do criação de uma abominação chamada dia do orgulho hétero, porque naturalmente tudo mais no Brasil vai muito bem e há portanto tempo para se dedicar a essencialidades como a de garantir um dia especial para o grupo de seres humanos que já domina todos os demais dias do ano. Sem falar no fato de ainda não termos uma lei contra a homofobia, o que deixa a atitude de Cunha ainda mais lambuzada de ignorância e preconceito.
Depois disso podemos esperar pelo dia do homem fanático-religioso, pelo dia do homem branco, dia do ricaço, pelo dia do latifundiário, e, quem sabe, pelo dia do patrão, o dia da corporação, o dia do poder concentrado do capital privado etc.
Tudo poderia ser resumido com a criação do dia do babaca, mas essa seria uma batalha única e, como o tempo para os lados da Câmara deve estar sobrando, melhor que se dediquem à criação de vários dias especiais para celebrar o opressor.
É uma tristeza enorme ter um ser humano com os valores de Cunha presidindo a Câmara, mas há coisas que podemos fazer e que não envolvem atos de ignorância ou intolerância como os que ele pratica.
Como inspiração podemos lembrar do americano Aaron Swartz, que em 2012 organizou virtualmente uma resistência popular à aprovação de uma lei que permitiria ao Governo americano o poder para censurar a Internet. O projeto de lei estava praticamente aprovado, com a maioria absoluta de parlamentares dispostos a satisfazerem o poder corporativo que executava lobby pelo SOPA (Stop Online Piracy Act, ou “parem os atos de pirataria na Internet) quando as caixas postais de todos os politicos favoráveis ao SOPA foram invadidas por milhares de apelos populares. Não apenas isso, os telefones não pararam de tocar, houve manifestações e comícios e, um a um, os parlamentares foram cedendo à força que veio das ruas. A história toda está contada no documentário sobre Swartz, um adorado e genial pirata moderno que lutava para que toda a informação na Internet fosse gratuita e que por isso se viu processado inúmeras vezes pelo governo americano; a história de Swartz é linda, rica e comovente e toda vez que penso nele, e no que ele fez, sou varrida por um arrepio dos pés à cabeça.
Swartz ensinou que é um erro achar que não podemos mudar cenários desanimadores como esse que coloca Eduardo Cunha no papel de protagonista. Podemos, então, lotar a caixa de entrada do email da Câmara dos Deputados explicando por que é decadente, vergonhoso e ofensivo que Eduardo Cunha paute coisas como Dia do orgulho hétero, ou aprove, como ele fez, o direito à passagem aérea paga pelo contribuinte para cônjuges de deputados (diante de tantas reclamações ele teve que voltar atrás nessa, o que mostra que "yes, we can"), ou que oficialize um culto religioso na Câmara, que, não é por nada não, deveria ser laica, mas sobre isso pouco se fala – todos esses projetos que contam com o apoio de Cunha. Podemos escrever, tuitar, feicebucar, ir às ruas, telefonar para a Câmara, mandar cartas… enfim, canais para que sejamos ouvidos não faltam.
Podemos também aporrinhar o quarto poder, a mídia, escrevendo para as redações e manifestando nossa indignação. Possibilidades não faltam, mas elas dão trabalho e exigem dedicação. Muito mais fácil sair pelos cantos reclamando e dizendo “esse país não tem mais jeito”.
E se os valores de cunha prevalecerem podemos então pedir que se faça em plenário, além do culto evangélico proposto por Cunha, algumas cerimônias de Umbanda, crença muito mais brasileira e muito mais difundida pelo país. Imaginem uma mãe-de-santo abrindo os trabalhos daquele dia, dando passe, dançando ao som dos atabaques. Para o meu gosto muito mais interessante e bonito do que um monte de engravatado de mãos dadas rezando o pai-nosso. Para o meu gosto, claro.
Aqui o link para mandar um recado para o Cunha:
http://www2.camara.leg.br/participe/fale-conosco