O sabor da rotina

Como um domingo qualquer ao lado do pai ajudou a colunista Milly Lacombe a entender a vida

por Milly Lacombe em

Eu tinha 8 anos quando meu pai me convidou, pela primeira vez, para passar o dia com ele. Era um convite improvável porque, dada a superpopulação do apartamento (mãe e mais três irmãos caçulas), a formação de duplas com um dos dois líderes e por um dia inteiro era coisa ligeiramente rara. Quando saíamos, era em bando – e sempre com a matriarca ao volante, já que meu pai nunca dirigiu.

Nesse dia específico em que meu pai fez o convite, tínhamos acabado de chegar do Rio para morar em São Paulo e, talvez querendo me dar alguma sensação de intimidade com a cidade nova, ou na tentativa de atenuar a saudade que eu provavelmente sentiria da praia, ele me levou ao Jóquei Clube para ver, durante toda uma tarde, corridas de cavalo.

Naquele domingo acordamos cedo, tomamos café da manhã juntos e assistimos a um campeonato de várzea que uma emissora paulista de TV transmitia ao vivo; Desafio ao Galo seria por muitos anos uma de minhas manias e motivos de pancadaria com minhas irmãs, que, domingo de manhã, queriam ver outra coisa na TV. Como tínhamos um aparelho só, os líderes eram sempre chamados para interceder.

Essência da vida
Naquele domingo, depois do banho, saímos de táxi para o Jóquei, onde almoçamos e, até o sol se pôr, permanecemos na varanda, em volta de uma grande mesa, comendo doces, tomando refrigerantes e ouvindo, pelo rádio de ondas curtas, o jogo do Flu no Maracanã. Apenas ele e eu.
Meu pai sempre foi fã de corridas de cavalo. Tinha uma coleção imensa de livros na estante do escritório de casa chamada Vida Turfista e muitas fotos que registravam momentos dele, ainda garoto, no hipódromo da Gávea, no Rio. O casamento, o nascimento dos quatro filhos e a mudança para São Paulo não afastaram dele a paixão pelas corridas.

Durante mais de 30 anos, até se casar aos 40, aos domingos, ele almoçava no Jóquei e ali passava a tarde. Uma rotina que fazia questão de executar solitariamente. Depois do casamento, minha mãe, vez ou outra, o acompanhava, mas não ficava a tarde inteira porque ela nunca gostou de corridas como ele – e rapidamente começou a entender que, mais do que uma paixão, aquele era um perigoso vício.
Mas eu, aos 8 anos, não sabia que estava sendo convidada para invadir a rotina solitária de meu pai e fazer dela minha rotina também – um benefício que, hoje entendo, deve ser dado a pouquíssimas pessoas na vida. Naquele domingo eu sabia apenas que estava sendo convidada para passar a tarde com ele em um lugar diferente.

No domingo seguinte, repetimos a dose, que, com mínimas alterações, assim permaneceu até que eu invadisse o pico da adolescência, quando sair com amigos e esconder a atração que sentia por meninas passaram a ser os focos principais.

Hoje entendo que aqueles domingos com meu pai me ensinaram muito sobre relacionamentos e tatuaram meu espírito com sensações das quais virei dependente química. Naqueles dias, passávamos muito tempo sem falar nada, meu pai e eu – cortesia das relações verdadeiramente íntimas: eu com o radinho do jogo, ele estudando o próximo páreo. Se o Flu fizesse um gol, ou se a jogada fosse importante, eu o informava. E ele, que me ensinou o que sei sobre futebol, não perdia a chance de me explicar alguma coisa nova sobre a essência do jogo quando eu me mostrava muito inconformada. “Não existe justiça no futebol”, ele repetia. “Não procure por ela, nem no jogo, nem na vida. Procure, isso sim, por emoção, no jogo e na vida.”

Naqueles domingos, quando as corridas terminavam, entre seis e sete, ele me pegava pela mão, entrávamos em um táxi, parávamos em uma padaria para comprar pão, presunto e queijo e íamos para casa, onde tomaríamos um lanche com a tropa miú­da e com minha mãe.

Manias e sensações
Não faz muito tempo, sozinha em casa, pensei nos domingos que passava com meu pai e na sensação de segurança que eles me davam. Pensei em como me sentia protegida ao lado dele, em como era a vida quando não havia contas para pagar, pressão no trabalho, processos trabalhistas que não são nossos, mas, por causa de leis arcaicas e estupidamente elaboradas, acabam caindo nas costas de quem não tem nada a ver com isso e, arbitrariamente, levam tudo o que juntamos trabalhando decentemente durante anos. Pensei em como era a vida quando não havia a necessidade de contratar um advogado para tentar me livrar de culpa que nunca tive, em como era a vida quando minha maior preocupação era saber onde estava o radinho de pilha que levaria ao Jóquei naquela tarde.

Sábado passado, com minha mulher, cumpri o ritual do fim de semana: café da manhã no nosso lugar preferido, leitura dos jornais, volta para casa para mais leituras ou um DVD, jogos de futebol na TV, jantar com amigos. Saber que o sábado vai ter sempre a mesma cara me nutre da ilusória e adorável sensação de ter algum controle sobre a vida. E saber que continuo a ter um cúmplice, alguém com quem posso passar horas em silêncio, de uma forma ou de outra, me devolve a sensação de proteção que, durante tantos anos, senti tendo meu pai ao meu lado.

E no fim, ao deitar ao lado da mulher que amo e encerrar assim o dia perfeito, percebo que, de um jeito ou de outro, tudo vai ficar bem e, silenciosamente, agradeço a meu pai por ter inaugurado em mim sensações e manias que me ajudam a colocar a vida em perspectiva para entender que, a despeito das injustezas do mundo, essa viagem vale a pena.

*A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@uol.com.br

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