O peso dos dias
Mas a pauta fica borrada pela baba grossa do ódio, pela espuma da vingança e do revanchismo de um país cuja elite bate palma pra Suécia
A dor nasce na cervical, imobiliza o pescoço, que gira tanto pra esquerda quanto pra direita como se repuxasse um anzol enfiado no trapézio. A carne retesada envolve a escápula, morde os tendões do ombro e irradia até o ombro, que estala. Uma pré-tendinite, diz a médica, fruto do levantamento de crianças de 14 quilos, engendrada por carregá-las com o braço esquerdo e realizar as tarefas com o braço direito. Fruto do cansaço de dois meses sem babá, sem um domingo de rolar na cama. A estrutura capengando logo agora que o mestrado começa, que meu companheiro inicia em um novo trabalho que o tira de casa. E a cada manhã as notícias do sangramento do país, narradas por jornalistas de caninos brilhantes no escuro. Hienas atrás de carniça, contentes com a confusão. Penso nos versos de Paulinho da Viola: "Faça como o velho marinheiro, que durante o nevoeiro, leva o barco devagar". Mas nada nunca foi tão rápido.
Tempos de ódio e, novamente, da chance de realizar uma verdadeira reforma política – a única maneira de evitar que o país seja engolido pela lama de futuras Lava-jato. Mas a pauta fica borrada pela baba grossa do ódio, pela espuma da vingança e do revanchismo de um país cuja elite bate palma pra Suécia, mas se revolta porque suas empregadas domésticas já não se comportam como antigamente. Um país de gente preocupada com o aquecimento global, mas incapaz de discutir o pré-sal sem ter a vista turvada pelos cifrões. O anzol enfiado no trapézio repuxa a carne. Amigos vão pras ruas empunhando bandeiras retrógradas. Os cartazes reviram o estômago. A náusea, a tristeza, a decepção. E aqui a menina cai doente. Presencia uma briga dos pais e tem febre. Não posso mas tiro a manhã pra ficar com ela, minha princesinha. Que país estamos construindo pra ela? Um país que debate os destinos de uma petroleira sem questionar o fato de ela ser uma PETROLEIRA? Uma das empresas responsáveis pela encruzilhada dos tempos em que a humanidade se meteu, uma das responsáveis por estarmos serrando o galho sobre o qual estamos sentados.
Legado possível
O menino abalado com a saída da babá fica feliz com a viagem ao litoral. Trinta anos indo a Búzios. Lembro com nostalgia do meu paraíso, ao correr os olhos pelas ruas e praias devoradas por humanos, esta espécie cuja aventura na Terra parece estar chegando ao fim. Penso nos meus filhos, minha alegria, e no sofrimento que passarão, penso em como construir alternativas menos piores para eles, penso num legado possível, mas penso que, apesar do meu egoísmo, vai ser melhor pro planeta, pros bichos, plantas e pedras que os deixemos em paz.
Não há como não acordar amarga no dia 16 de março. Há 30 anos o Brasil estava nas ruas pelas diretas, e hoje volta a elas pedindo, também, a volta dos militares. Não tem consolo. As agulhas da médica não resolvem a dor na cervical. A dor permanece. E isso é bom. Não se pode mais virar os olhos da realidade. Pior do que sonhar com o Antropoceno é acordar nele. E quem não sabe o que é Antropoceno, procure saber.
Antonia Pellegrino, 35 anos, é roteirista e escritora. Autora do livro Cem ideais que deram em nada e ganhadora do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro pelo roteiro do filme Bruna Surfistinha. Seu e-mail: a.pellegrino@terra.com.br