O mundo sem o meu pai
Maria Ribeiro: "Ele me deixou uma herança de fúria e afeto, e assim espero atravessar muitas águas de março"
Ele me deixou uma herança de fúria e afeto, e assim espero atravessar muitas águas de março
No último dia 30 de março, às cinco da matina, comemorei em silêncio os dez anos completos do nascimento do meu primeiro filho (e, portanto, o meu próprio). Não imaginei que um dia tão marcante do meu calendário afetivo pudesse ter um novo sentido. Na época, achei que ser mãe me transformaria imediatamente em uma adulta, mas isso aconteceu duas semanas atrás.
Eu sou fã do outono. A luz, a temperatura, a umidade relativa do ar, tudo que já acho bonito nessa época do ano me soava especialmente emocionante naquele sábado com cara de domingo. Comemoramos o aniversário do João em família, e assim, em meio às fotos que pendurei pela casa com os registros da primeira década do meu primogênito, despedi-me pra sempre da condição de filha, uma condição tão doce e natural que nunca havia me dado conta, como o prazer de enxergar ou passar a mão pelo cabelo. Mais ou menos como quando atravessei o centro cirúrgico depois de ter parido meu rebento e o corredor do hospital tinha mudado de cor, passei a ser de novo outra pessoa assim que ouvi pelo telefone a voz embargada do meu irmão Felipe.
– Foi.
Eu estava no cinema com meu filho e sobrinhos, e quando vi que o celular tocava às 23h50 tive poucas dúvidas: meu pai tinha ido embora. Saí da sala pra poder chorar e receber no saguão do Cinemark esta pele nova, a de uma mulher cujo pai não estará mais disponível pra comentar o jogo do Fluminense ou a empadinha de camarão do Jobi.
Senti uma solidão que era triste, mas ao mesmo tempo fui tomada por um amor que enfim pôde ser sentido: eu era completamente apaixonada pelo meu pai e que se dane se ele fez um monte de besteira. O cara não era fácil, e Freud acendeu em mim a necessidade de ficar longe, mas agora nada mais importava. Eu era de novo uma menina louca pelo pai, querendo ir pra Angra ouvindo “Bette Davis Eyes” dez vezes seguidas no toca-fitas e dividindo a ponta da lancha com meu capitão do mar.
Meu pai foi meu grande companheiro da infância. Nem meus irmãos, nem minha mãe, nem meus primos, nem minhas amigas. Meu pai. Jogávamos Atari, fazíamos álbuns de figurinhas, visitávamos os cavalos nas cocheiras do Jóquei, comíamos pão doce da padaria Rio-Lisboa. Um laço amarrado forte dentro do peito.
E agora ele foi embora, e eu vou morrer de saudades.
Doces Lembranças
O dia 30 de março vai continuar a ser essa data doce. Meu pai partiu gentilmente. Esperou acabar a comemoração do neto que tanto amava e pouco via, e deixou tudo pronto, dos documentos à herança, do anúncio fúnebre (escrito por ele mesmo) aos seguros de vida e, principalmente, de como deveríamos nos comportar.
No último domingo em que estivemos juntos, ameacei chorar e ele ficou bravo.
– Ninguém no mundo foi mais feliz que eu, minha filha.
– Eu sei, pai. É que vou sentir muita falta do seu amor e do seu olhar.
Mas este misto de corpo e mente que vos fala é feito de água e Leonidio, órgãos e Leonidio, músculos e Leonidio. E enquanto eu estiver aqui meu pai vai estar mais do que vivo.
Meu progenitor me deixou uma herança de fúria e afeto, e assim espero atravessar muitas águas de março, agradecendo ao mês que trouxe meu filho e levou meu pai, e cuja brisa me amansa o coração.
A vida, enfim.
Maria Ribeiro, 37 anos, é atriz e diretora do documentário Domingos, sobre o diretor de teatro e de cinema Domingos Oliveira. Atuou em Tropa de elite e Tropa de elite 2 e é uma das apresentadoras do Saia justa, no canal GNT. Seu e-mail: ribeirom@globo.com |