O incrível cotidiano de um casal de duas mulheres
Poucas coisas abalam o relacionamento da colunista como um jogo decisivo do Corinthians
Seis em ponto. Abaixei a tela do computador, dei a jornada de trabalho por encerrada, fui para a sala e liguei a TV. Em dia de jogo importante do Corinthians não se brinca. “O que você está fazendo?”, perguntou meu amor, ainda no trabalho, pelo telefone. “Transcrevendo a fita daquela entrevista de ontem”, disse com a voz um tom mais alto, o tom das mentiras cotidianas, feliz por não estarmos no Facetime (meu pai bem avisou que não gostaria de estar vivo quando o telefone e a televisão se cruzassem numa só parafernalha). “Vou passar nos meus pais antes de ir para casa, tá?”, continuou. “Jura? Precisa? Hoje?”, respondi, sabendo que emendar perguntas curtas não apenas faria ela achar que eu preferiria que viesse direto para casa, mas também daria a pinta de que estava muito ocupada. “Não quer que eu vá?” “Quero que venha para casa”, respondi, dois tons acima.
Eu realmente queria que ela viesse para casa, como tenho querido todos os dias dos últimos seis anos, mas, dessa vez, semifinal de Libertadores, a chegada dela me faria perder a concentração, tão fundamental em jogos decisivos, porque a verdade é que quando ela chega não consigo ver mais nada. Portanto, queria, mas mais em cima da hora do jogo. Só que, por motivos de delicadezas necessárias à saúde de um casamento, isso não foi esclarecido. “Tá. Vai, meu amor, enquanto eu acabo de transcrever a fita”, consenti, três tons acima, enquanto ia até a cozinha pegar o saca-rolha. “Depois a gente vê o jogo junto aqui”, completei. “Que jogo?”, ela disse. Era, claro, uma pergunta-truque. Ela sabia muito bem que jogo. “O jogo do qual eu falo há 20 dias” era o que gostaria de ter respondido. Mas me contive. “Libertadores, amor.” “Ah, tá. Quem vai aí?”, perguntou ela, que também sabia há muitos dias quem iria. “Gio, Lu, Paulo e Antonio”, respondi já de volta à TV com a garrafa de vinho e o abridor, tentando ouvir o que dizia o comentarista esportivo.
Eu, anfitriã?
“O que você vai oferecer para eles comerem?”, falou ela com a voz mais dura. “O que vou oferecer para eles comerem?”, repeti usando a tática de meu sobrinho para ganhar um tempo e ver se decifrava a análise do jogo que fazia o cara da televisão. “Isso. O que vai servir?”, disse ela, agora com mais urgência na voz. É bastante possível que ela conheça o truque da repetição, pensei com os olhos no aparelho na tentativa de fazer uma leitura labial do comentário e, como uma contorcionista, apoiando o telefone com a cabeça toda torta entre a orelha e o ombro, abrindo a garrafa sobre a mesa de jantar. Ganso jogaria? Já tinham saído as escalações? “Hein?”, disse ela diante de meu devaneio silencioso. A voz agora soava perigosamente direta. Gostaria de dizer que ia oferecer o jogo, o sofá superconfortável que compramos em 12 nada suaves prestações na Artefacto e a minha torcida calorosa, mas eu sabia do que ela estava falando. Minha mulher libriana não concebe a ideia de receber convidados e não tratá-los como se fossem o príncipe William e Kate Middleton. Mesa posta, queijos, vinhos, cervejas, refrigerantes, menu preestabelecido, sobremesas.
“Pizza”, emendei de bate-pronto, sabendo que ela acharia aquilo banal e mixuruca. “Pizza?”, repetiu ela do outro lado da linha. Estaria também tentando ganhar tempo? Uma pulga se instalou em minha orelha esquerda enquanto via as primeiras imagens do entorno do estádio, já bastante cheio. “Onde você está?”, perguntei. “Onde eu estou?”, mandou em outro repeteco, para me deixar ainda mais encucada. Antes, quando não havia celulares e o futebol era um jogo mais ofensivo, ficava mais fácil saber onde exatamente os amantes estavam.
A verdade é que meu gênero vem antes de minha sexualidade, e mulheres emaranham e encucam e conseguem ver ovos cheios de pelos. Comecei a repassar: casa dos pais, repetição de perguntas, chegar em casa mais tarde… só me restava oferecer àquele momento minha total concentração, o Corinthians que me perdoasse.
Pingue-pongue
Larguei o saca-rolha e a garrafa, apontei o controle para o aparelho e abaixei um pouco a TV. “É”, agora a secona era eu. “Onde você está?”, repeti. “Como assim onde estou? No trabalho, saindo para a casa dos meus pais. Mas se você quer tanto acho que vou passar aí antes de ir e te dar um beijo”, disse ela, retomando a doçura na voz justamente na hora que o repórter avisa que Ganso vai para o jogo. “Não”, reagi firme e infantilmente às duas notícias enquanto aumentava um pouco o volume e me servia de vinho. “Não? Como não? Não me quer em casa?” Ah, toda a beleza do relacionamento de duas mulheres. Era hora de jogar no improviso. “Melhor ir direto para a casa de seus pais, assim você chega aqui mais cedo, amor.” Meio pelo Ganso, meio pela sinuca em que tinha me metido, meio pelos fogos que começavam a estourar no bairro meu coração batia bastante acelerado. “Tá. Vou para lá então. Mas, amor,
pizza?” Era o momento do contra-ataque. “Eles todos querem pizza”, disse quatro tons acima, mas já considerando que Paulo e Antonio, meus sobrinhos adolescentes, ainda não disseram não para uma pizza na vida, e que Lu e Gio, duas corintianas miudinhas, nunca parecem ter muita fome. “Temos vinho, cerveja, refrigerante suficientes?” “Opaaa”, respondi, alongando a última sílaba, o recurso derradeiro da mentira derradeira, já seis tons acima. Eu realmente não fazia ideia, mas o importante agora era encurtar aquele telefonema porque a informação de que Ganso entraria em campo precisava ser entendida, e, afinal, ela estava mesmo indo para os pais, porque quem se propõe a passar em casa para dar um beijo e matar a saudade antes de consumar a traição? “Vem logo para casa, meu amor”, disse eu, muito doce e no tom natural, sentando no sofá já quitado com uma taça de vinho na mão.
“Eu te amo”, respondeu a voz do outro lado da linha. Ela sempre faz isso; essa mania de colocar tudo em perspectiva. E, de verdade, o que mais importa? Nem o Corinthians, nem a Libertadores, muito menos a inesperada escalação do Ganso. Porque, como escreveu Antonio Maria, o homem só tem duas missões na vida. Amar e escrever à máquina. Escrever com dois dedos e amar com a vida inteira. E eu, que escrevo com dois dedos, vou te amar com a vida inteira. Vem logo pra casa, meu amor.
A carioca Milly Lacombe, 44 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com