O dia em que o pó acabou

Talvez o grande segredo da vida seja conseguirmos existir plenamente nas pausas, e não simplesmente passar por elas

por Redação em

 
– Você está pronta?
– Mais ou menos. Pára o carro na rua e sobe.
– Seu pai ainda está aí?
– Está.
– Então não subo.
– Pára com isso. Sobe porque eu não quero sair correndo.
– Pode fazer o que tem que fazer. Te espero no carro.
Meu pai sempre foi uma razão a mais para que meus amigos e minhas namoradas subissem até o apartamento. Brincalhão, piadista, bonachão, tratava cada um dos meus com respeito e simpatia – mesmo nos piores dias. Mas essa era uma ocasião diferente. Meu pai estava dentro de uma caixinha de madeira – o que restou foram cinzas. Como minha mãe, meus irmãos e eu não conseguíamos concordar com o local onde jogaríamos o pó, decidimos que ele ficaria comigo até lá. E minha amiga, impressionada com o fato, se recusava a subir desde então. Assim, terminei de me trocar e desci.
– Pronto, podemos ir.
– O que é isso na sua mão?
– Meu pai.
– Você só pode estar brincando.
– Ele também vai.
Acho que passei uns três meses levando meu pai pela cidade. No começo, foi difícil entender que aquela pequena caixa de madeira continha ele. Demorei dias até conseguir abrir a tampa para ver a cor do pó – um cinza bem claro e fino. Me perdia em pensamentos estranhos: queria saber se ali havia só pele, se a roupa tinha sido queimada junto com o corpo, o que era osso… morrer fica ainda mais esquisito quando tentamos racionalizar. Mas depois de um tempo a situação me pareceu absolutamente normal. Meu pai dentro de uma caixa minúscula. O mundo sem ele.

Nada como antes

Perder alguém que é parte de você nunca faz sentido. Não de cara. Mas o telefone continua tocando, as contas continuam chegando, você se pega, mais cedo do que tarde, rindo de uma piada boba. Tudo se encaixa outra vez. Com uma diferença: nada será como antes. E a grande piada cósmica é que não temos como saber em que momento a vida mudará para sempre.
Na última vez que falei com meu pai, ele estava no hospital: ia ser operado, um procedimento de rotina, um osso quebrado na perna. Eu estava nos Estados Unidos; ele, em São Paulo. Como sempre, falamos bem do Fluminense e mal do governo – ou mal do Fluminense e bem do governo, não lembro mais. Como sempre, demos risadas. E, como sempre, ele terminou com uma citação – que eu, por mais que me esforce, não consigo lembrar. Se pudesse saber que aquela seria a última vez, teria certamente anotado. Mas a piada cósmica é mesmo boa, e não há como saber.
Claro que o truque é fazer com que todas as vezes tenham a pompa da última. O problema é que somos equipados com essa presunçosa mania de achar que sempre haverá mais um.Mais um beijo, mais um abraço, mais um telefonema fora de hora, mais um “eu te amo”, mais um brinde na mesa do jantar, mais uma oportunidade para pedir desculpas, mais uma chance de fazer direito, de não levar tão a sério, de seguir a intuição e não a razão. Mas quem tem tempo para tantos rituais executados no momento presente? Nossa cabeça está no que passou e no que virá, nunca aqui, neste exato instante.
Agora, aliás, não existe: fale agora, e agora passou. A grande sacada talvez seja entender que agora não é um momento, uma circunstância, mas um estado de espírito. Um estado de espírito, diga-se, difícil de ser atingido – salvo por monges, gurus e criaturas espiritualmente superdesenvolvidas que passam o dia a meditar e não têm contas para pagar. Mas quem sabe não é esse o grande segredo da vida? Se só o agora existe, por que insistimos em viver lá atrás ou ali na frente? Por que estamos sempre com a sensação de que, quando finalmente acertamos o passo, a música muda?

Pausa para a vida

O pianista Arthur Rubinstein uma vez foi perguntado sobre como era capaz de usar as notas com tanta maestria. Respondeu que usava as notas como qualquer outro – a arte estava nas pausas. Será isso então? Quando conseguirmos existir plenamente nas pausas, e não simplesmente passar por elas, teremos entendido a vida?
Era domingo, um domingo quente de novembro.Acordamos cedo, minhas irmãs, minha mãe, meu irmão e eu. Fomos até o Jockey Club, lugar onde meu pai se sentia mais inteiro. Comigo, a caixinha de madeira. Era ali que jogaríamos o que restou. Tudo combinado na véspera: cada um pegaria um punhado e espalharia pela grama – repetiríamos o gesto, em rodízio, até o pó acabar. Foi exatamente o que fizemos, em silêncio, os cinco.
Até que, uma hora, por mais que diminuíssemos as porções, o pó acabou.
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