O cotidiano de um guerreiro intergaláctico

Torço para que Francisco nunca perca de vista a maneira especial com que enxerga a vida

por Milly Lacombe em

Do conforto de seu planeta, Francisco fica de olho no nosso mundo, onde somos heróis e vilões de nós mesmos. Torço para que ele nunca perca de vista a maneira especial com que enxerga a vida – e continue a proteger os indefesos

 

 

Francisco vai fazer 6 anos. De presente, pediu à mãe uma roupa do exército de Jedi, “mas tem que ser a verdadeira, com as partes duras e tudo mais”, exigiu. Missão tão árdua quanto liquidar Darth Vader. A mãe, minha irmã, que não é boba nem nada, sabendo da dificuldade do desafio, aguardou o momento ideal para disparar sua munição. E o momento ideal ocorreu quando estávamos, sábado à noite, jantando em uma movimentada lanchonete da cidade de São Paulo. “Francisco, diz para a Dinda o que você quer de aniversário”, soltou ela, displicentemente, entre uma batata frita e outra. O garoto, subitamente anima­do com a perspectiva de me ver presenteá-lo com ta­manho mimo, levantou da mesa, já em posição de sol­dado de Jedi, e começou a descrever, em minúcias, os detalhes da roupa da tropa que eu deveria comprar. Estava psicologicamente dopado pela chance de falar sobre seu assunto predileto ultimamente: Guerra nas Estrelas. Durante a performance de guerreiro interga­láctico, por pouco não atingiu um gar­çom, no que te­ria sido um golpe baixo e quase fatal. “Francisco, senta!”, disse minha irmã, ainda calma, mas sabendo que tinha iniciado a verdadeira batalha da noite. O guerreiro obedeceu. Por 10 segundos. No 11˚, voltou a leva­n­tar e iniciar sua rotina de movi­men­tos bélicos. Fran­cisco está determinado a salvar o mun­do – e eu continuo torcendo.

– Eu gosto do Darth Vader – provoquei, vendo imediatamente os olhos de minha irmã e de meu cu­nhado se arregalarem.
– Mas ele é mau – rebateu o garoto, assustado e in­­ter­rompendo bruscamente sua rotina de movimentos.
– Um dia ele já foi bom – argumentei, na espe­rança de tirá-lo daquele estado maniqueísta.
– Senta, Francisco! – disse a mãe.
– Cadê a canetinha azul? – perguntou Marcelo, o irmão caçula, concentrado em pintar um abençoado li­v­ro de colorir que o pai, que não é bobo nem nada, ha­via com­prado a caminho da lanchonete.
– Pinta de verde – sugeriu Estela, a primogênita.
– Não gosto de verde!
– Eu torço para o São Paulo – emendou o soldado de Jedi, atraído pela palavra-chave “verde”.
– O que isso tem a ver com Star Wars? – perguntei.
– Senta, Francisco! – disse a mãe.
– Tem que ter aquela máscara branca, sabe? – con­­­­­ti­nuou o garoto, agora sobre a roupa do exército de Jedi.
– Sei – respondi, já pensando onde poderia encontrar uma farda de Jedi.
– Você gosta do Darth Vader? – perguntou Fran­cisco à minha mulher, que estava sentada a seu lado na me­sa redonda.
– Não... – titubeou ela, ainda sem saber se estava dando a resposta correta.
– Cadê a canetinha azul? Cadê a canetinha azul? – re­clamou o caçula.
– Pinta de preto! – insistiu a primogênita.
– Eu torço para o São Paulo – disse Francisco, atraí­­do pela palavra-chave “preto”.
– Luke Skywalker é corintiano – provoquei.
– Não é! – disse ele categoricamente antes de me dar as costas e começar a explicar à minha mulher tudo sobre os motivos que deveriam levá-la a não gostar de Darth Vader.
– Senta, Francisco!


Universo colorido
Mas um guerreiro de verdade não senta. Um guerreiro como Francisco, apaixonado por melodias e ins­trumentos musicais, pelo Homem-Aranha, por Fór­mu­la 1 e por preciosos momentos de solidão, vive eufórico demais para sentar, entretido com a poesia de seu universo colorido, um lugar onde tudo é dividido entre o bem e o mal, entre o certo e o errado, entre o herói e o vilão. Do conforto de seu planeta, o guerreiro fica de olho no nosso mundo, onde somos, todos, bons e maus, certos e errados, Lukes e Darths, heróis e vi­lões de nós mesmos. E eu, que a cada dia que passa me apaixono um pouco mais pelo guerreiro, querendo ser Princesa Lea, continuo apostando que o guerreiro veio nos resgatar. E torço para que o garoto nunca perca de vista a maneira especial e exótica com que enxerga a vi­da e continue a proteger os indefesos.

Como fez outro dia, quando estava no carro com a mãe e um motorista distraído bateu na traseira deles em um sinal da cidade. “Fica aqui, Francisco, eu já vol­to”, disse minha irmã logo depois do leve impacto. “On­de você vai, mãe?” “Vou pegar o nome da mulher que bateu na gente, já volto.” Um minuto depois, mi­nha irmã estava de volta, com o nome do motorista. “Mãe!”, disse o guerreiro bastante assustado. “O que foi, meu filho?” “Você pegou o nome dela?” “Peguei.” “Mas e agora, mãe? A mulher ficou sem nome?”
Só que um guerreiro também padece. Semana retrasada, Francisco passou mal e vomitou. No dia se­guinte, já melhor, não queria comer nada. A babá, a pe­di­do da mãe, insistiu. “Não vou comer. Não quero vo­mi­tar outra vez”, alegou o garoto. “Come, Fran, por­que, se Deus quiser, você não vai mais vomitar”, tentou a babá. Mas um guerreiro não é assim tão facilmente con­­­vencido. “Então, por que Deus quis que eu vomi­tas­­se ontem?”, perguntou o guerreiro.

Na saída da lanchonete, naquele sábado, enquanto esperávamos os carros serem trazidos, Francisco me puxou de lado. “Você entendeu qual é a roupa do exér­cito de Jedi?” “Perfeitamente”, respondi. “Se não encontrar, não tem problema. Daí, você pode me dar um capacete de piloto”, disse antes de sair executando mo­vimentos que simulavam Massa na tomada de uma curva fechada. O guerreiro, como um viajante das ga­lá­­xias, já estava em outro planeta.

A carioca Milly Lacombe, 41 anos, é jornalista. Seu e-mail: milly@trip.com.br

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