Norma de vida

Babá, confidente, rezadeira. Era hora de ela, que dormira comigo até meus 10 anos, entrar no sono profundo. Nunca senti nada parecido

por Redação em

 
No dia em que meu irmão completava 3 anos, estávamos morando em Santos e o Beto trouxe da sala, pela mão, uma mulher ruiva com cabelos cacheados, nos seus 30 e poucos anos. Ele me mostrou pra ela e disse: “Essa aqui é a minha irmã”. A Norma então chegava no meu primeiro ano de vida para ser minha nova babá.

Adorava fazer bolos, cookies e era rápida e criativa na cozinha. Aos poucos minha mãe foi passando para ela seus conhecimentos de banqueteira. A Norma foi assumindo também o controle da gastronomia da casa. Criava muitas receitas novas.

Toda manhã eu ia andar na praia com ela. Vestia-me de calcinha e chapéu combinando. Quando íamos à piscina, ela ficava com medo porque eu simplesmente pulava dentro d’água. Gostava de fugir e ficar escondida vendo ela me procurar.

Mudamos para um apartamento em Santo André. Toda manhã eu, o Beto e a Norma íamos andando pela rua para brincar na casa da minha avó Albertina.

Lá tinha duas tartarugas, jardim e era uma casa antiga bem no centro da cidade. Quando mudamos para uma casa, a Norma se tornou governanta, tomando conta de todo o funcionamento dela. Sempre foi minha confidente. Dormiu no meu quarto até que fiz 10 anos.

Viajou com a gente por todo o mundo. Adorava perfumes, cremes e xampus. Criava suas próprias roupas e mandava confeccioná-las.

Quando comecei a dirigir, enfiava a Norma no carro e falava: “Vamos dar um rolê?”. Ficávamos rodando e trocando idéias.

Dentro da sua simplicidade, ela sempre foi muito sábia. Dominava a linguagem do amor. Era extremamente religiosa. Tinha todos os tipos de santinhos. Chegou a mandar fazer uma santa que foi protagonista de vários sonhos dela. Não tinha nome, era a Santa dos Sonhos. Portanto, além de babá, quituteira de mão-cheia e governanta, era também a rezadeira oficial da família, cuidando da espiritualidade de todos nós. Até para os cachorros ela rezava e cuidava deles como filhos.

Ela era tão fervorosa, que se concentrava para ver coisas. Quando eu tinha que tomar decisões importantes pedia para que me desse direcionamento. Sempre respeitei!

Ausência e presença
Quando sofri o acidente que me deixou tetraplégica, sem saber de nada ela não dormiu, pois a nossa cadela Vivi latiu a noite toda. Culpou-se por não estar do meu lado naquele momento. Talvez tenha sido a mesma culpa que eu senti quando ela foi para o hospital com falta de ar, e eu não pude acompanhar. Não foi prontamente atendida e entrou em choque. Acabou na UTI com pneumonia, entubada e sedada. Todas as noites eu saía do trabalho correndo para vê-la mesmo depois do horário autorizado de visitação. Sentia um misto de dor profunda e esperança de que sairia ilesa daquela situação. Um medo de jamais ser feliz e que piorava por não tê-la por perto.

Morou na casa dos meus pais até o fim.

Tentava barganhar a sua volta dizendo que nem usara os xampus novos que eu lhe dera, que os cachorros choravam a noite toda pela falta dela e ninguém conseguia comer outra comida que não fosse a dela.

Ficava observando o aparelho respirar por ela, o corpo inchado, um sono profundo e as sobrancelhas perfeitas. Aquele era o meu momento secreto de ter mais um pouco dela.

Eu nunca senti nada parecido.

E ela se foi...
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