Nonna, verdade que você tá presa?

Triste e desanimada, minha mãe resolveu sair de carro pela madrugada. Nessa noite, não voltaria mais

por Milly Lacombe em

Triste e desanimada, minha mãe resolveu sair de carro pela madrugada. Nessa noite, não voltaria mais

Liguei para minha mãe para perguntar se ela já tinha executado o “vale-presente” que demos no aniversário: uma persiana elétrica para o quarto. Com o ombro direito prejudicado pela artrite, minha mãe só consegue baixar ou levantar o aparato com ajuda de terceiros. Ela então contou que tinha desistido da persiana porque ia começar a fisioterapia e pretendia conseguir voltar a erguê-la muito em breve. Eu disse que era presente, que ela devia chamar o técnico, instalar e mandar a conta para os quatro filhos. Aí ela respondeu, com uma voz muito calma, que era bobagem porque não sabia quanto tempo ainda ficaria naquele apartamento. “Você vai se mudar?”, perguntei. “Acho que vou morrer”, emendou. Tentando quebrar o climão que se instalou, eu disse que, se ela estava achando que ia morrer, então tinha péssimas notícias: ela ia morrer, certeza. Ela riu, mas explicou que, pela primeira vez, estava muito desanimada, sem vontade de fazer as coisas, meio preguiçosa e que acreditava que isso poderia indicar que o fim estava perto. Fiz todo o meu discurso de “a vida começa aos 70” etc. e tal, mas o humor dela não sofreu nenhuma alteração. Assim que desliguei, telefonei para minha irmã Adriana, sempre a mais sensata.

“É o calor. O ar-condicionado do quarto dela quebrou, e ela não consegue ser feliz suando daquele jeito. No outono passa, e estamos quase no outono.”

Falei então com Nininha. “Deve ser porque as amigas ou morreram ou estão doentes”, ponderou antes de concluir: “E tem o calor, né?”.

Liguei para meu irmão em busca de clarividência. Ele escutou minha reflexão sobre finitude e disse apenas: “Já chamei o técnico do ar-condicionado. Quando parar de suar, ela fica mais animadinha”.

Não me conformei. A melancolia que detectei em sua voz não era um episódio de verão. Muitas vezes, para morrer, basta que, conceitualmente, desistamos de viver, pensei. Preocupada, liguei outra vez para saber se minha mãe queria ir jantar comigo e com meu objeto de desejo. Soube que, naquele dia, ela teria que fazer companhia a uma amiga de infância que está com câncer e que, saindo dali, preferiria ir para casa porque estaria “muito, muito triste”. Fui dormir angustiada, imaginando ela sozinha naquele apartamento silencioso, que um dia já abrigou seis e foi tão barulhento. Peguei no sono pensando em como poderia ajudá-la. E antes das sete da manhã recebi um sinal. Ele veio com o repicar estridente do telefone. Do outro lado, a voz de Adriana, a mais sensata.

“Você sabe onde está a mamãe?”

“Morta! Morreu?”, eu disse, já hiperventilando.

“Não, a mamãe não morreu. Ela está presa. Presa. Estava num cassino clandestino às três da manhã quando os policiais chegaram. Agora tá presa.”

Rabecão, não

Aquilo era, sem dúvida, um alívio. Mas do tipo de alívio que sentimos quando o dentista diz: “Não é um canal, mas tem aqui entre os seus molares um casal de bailarinas minúsculas fazendo pas de deux”. Ou seja, um alívio seguido de uma imagem davidlynchianamente bizarra.

Soube então que havia, com ela, 53 pessoas detidas. Muitas, senhoras arteiras e acima dos 65. Liguei para o DP. “Moço, minha mãe está presa aí?” E ele respondeu: “Tem umas 40 senhoras aqui, minha filha. Não tem como saber agora quem é sua mãe, tá confuso”. Aflita, tentei o celular e ela atendeu. “Te deixaram ficar com o celular?”, perguntei incrédula. “Claro. E também não vim no rabecão”, ela disse, orgulhosa de si mesma. “Como você foi para o DP então?” “Ué, com meu carro. Fiz uma pirraça enorme, disse que não entraria no rabecão e eles pegaram meus documentos e me deixaram vir com meu carro. Ainda trouxe três amigas comigo.”

Como não podíamos falar muito, desligamos. Enquanto isso, Adriana tentava um advogado para tirar minha mãe da prisão, e eis aí uma frase que jamais imaginei escrever. Sem conseguir pegar no sono outra vez, fui tomar café na casa de Nininha, que fica ao lado da minha, e encontrei Bruna, 8, na cozinha. “Sabe da Nonna?”, perguntei enquanto colocava uma fatia de pão na torradeira. “Não. O que houve?”, Bruna questionou, muito séria. “Está presa”, eu disse. “Ah tá, Milly. Tá sim. Nonna tá presa. Humhum”, ela disse com as mãos na cintura e balançando a cabecinha pra cima e pra baixo. Como eu continuava a olhá-la sem me manifestar, Bruna pegou o telefone e teclou. “Nonna, verdade que você está presa?” E, enquanto minha mãe respondia, seus olhinhos e sua boquinha se alargavam numa expressão de horror.

Corre-corre

Passava das quatro da tarde quando minha mãe foi, finalmente, solta. Liguei para saber como ela estava e notei que sua voz havia mudado completamente. Alegre e estimulada pela estrepolia que protagonizou, contou que, até ser presa, estava se divertindo muito no cassino, que “tinha um ar-condicionado excelente”, e que havia feito novas amigas, tirado um monte de fotos com os guardas e que não via a hora de ser informada a respeito de outro cassino geladinho e clandestino na cidade. E então disse que precisava desligar porque os netos não paravam de ligar para que ela contasse a história da prisão, e de como se recusou a entrar no rabecão, e dos policiais com quem fez amizade, e do corre-corre no cassino na hora em que a polícia chegou.

Foi assim que minha mãe encontrou uma brecha para escapar e voltar a sorrir. E, se não é possível saber quanto tempo ainda temos juntas aqui neste planeta maluco, é bastante possível prever que minha mãe voltará a ser presa. Pelo menos enquanto esse calor não passar.

 

(*) A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com
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