Na mesa do jantar
Milly Lacombe fala que sabia que quando decidiu viver a sua vida, abriria mão de muito
| coluna do meio
Meu pai era sempre o primeiro a ser servido. O que minha mãe dizia era que ele não suportava comida que não estivesse absolutamente escaldante - e era mesmo verdade, tanto que, quando compramos um micro-ondas, o prato dele chegava a ser reaquecido no meio do jantar -, por isso tinha que ser sempre o primeiro; salvo nas ocasiões em que a matriarca estava uma fera com ele. Nessas, para deixar claro quem mandava naquele pedaço, ele era o último a ser servido, isso quando não tinha que passar pela derradeira humilhação de se servir com as próprias mãos.
Depois, a sequência era por ordem de chegada (ao mundo): eu, Adriana, Nininha e Kiko. Durante a rotina, ficávamos sentados, cada um em seu lugar, esperando pacientemente a vez. Por último, minha mãe servia a si mesma. Ou não. Porque ela nunca comeu carne, ainda que nos estimulasse a não seguir seus passos. Então, normalmente, pedia um omelete ou uma salada de atum, que eram trazidos da cozinha já no prato.
O problema é que eu sempre comi tão rapidamente e tão gulosamente que antes mesmo que ela pudesse servir meu irmão, o último na cadeia alimentar, eu já estava com o braço estendido e um prato vazio suplicando por mais. Era mais ou menos nessa hora que o caçula, para debochar de minhas formas rechonchudas, me chamava de Moby Dick e minhas irmãs morriam de rir da gracinha infame. Também era mais ou menos nessa hora que minha mãe sugeria, ainda de pé executando a rotina de colocar comida em nossos pratos: "Arnaldo, por que você não conta a história dos ratos e dos gatos?".
Era a senha para que meu pai, entre garfadas, nos entretivesse com a saga dos ratos que se mudaram inadvertidamente para uma comunidade de gatos, nas versões inglês britânico e, depois, americanizado. Como ele carregava nos sotaques e, na versão yankee, anasalava a voz e acelerava a narração, morríamos de rir. Todas as vezes.
Semana passada, meu objeto de obsessão teve uma vontade súbita de comer o macarrão alho e óleo que minha mãe faz e pediu que eu ligasse para a matriarca para saber por que, afinal, ela ia quase todos os dias nas casas de meus irmãos e raramente vinha na nossa. "Eu sei que ela vai ajudar suas irmãs e seu irmão com os netos, mas temos que ser prejudicadas porque não temos filhos? Eu quero comer o macarrão que ela faz!"
Como aquilo soou feito uma ordem, liguei imediatamente, mas, antes que eu pudesse dizer "oi, mãe", o telefone foi arrancado de minha orelha. "Adel?", minha mulher, sabe-se lá por que, suprime a última letra do nome de minha mãe. "Adel! Eu não acho justo você ir tantas vezes na casa dos outros filhos e nunca vir na nossa. Quando você pode vir jantar aqui e fazer aquele macarrão?" O telefonema durou 10 segundos, ao final dos quais um jantar foi marcado para dali a dois dias.
Às gargalhadas
Para deixar a ocasião ainda mais inusitada, foi convidada toda a parte de minha família que estava em São Paulo (a maioria tinha escapado da cidade em nome das férias escolares). Assim, a turma do jantar acabou formada pela matriarca, pela Dinda, irmã de minha mãe e que veio do Rio para uma rápida visita, e por meus dois sobrinhos adolescentes: Paulo e Antonio. Paulo topou o programa estranho porque nunca me disse não na vida - pelo menos até hoje. E Antonio alega que topou porque me ama e estava com muita saudade (ele tinha me visto um dia antes), mas topou mesmo porque é capaz de comer o macarrão de minha mãe até no café da manhã. E assim formou-se a galera do jantar em nossa casa. Dois adolescentes, duas senhoras, minha mulher e eu.
Ao redor da pequena mesa que ficou lotada, comemos, bebemos e conversamos. Para entreter, contei histórias pitorescas do primo Milton, filho da Dinda, que têm sobre Paulo e Antônio o efeito que a saga dos ratos e gatos teve sobre mim e meus irmãos: mesmo repetidas à exaustão, provocam muitas risadas, ainda que Dinda seja a que mais gargalhe com as aventuras do próprio filho.
Depois de algumas horas, o grupo deixou nossa casa num mesmo carro, Paulo ao volante, esperando a turma descer, e Antonio ajudando Dinda, que sofre de uma degeneração progressiva na mácula e já não vê com precisão embora continue enxergando melhor do que qualquer um de nós, a enfrentar a escada com segurança.
Quando decidi viver a vida que sempre sonhei, sabia que estaria abrindo mão dos jantares diários em volta de uma mesa farta. Mas não sabia que teria a chance de reunir ao redor da minha pequena mesa personagens que fizeram parte daquela primeira e outros que chegaram muitos anos depois. Não sabia que continuaria a ser amada e frequentada por quem um dia me negou, nem que teria dois sobrinhos adolescentes que, mesmo depois de virarem homens, ainda aceitariam um convite para jantar em detrimento de uma noitada com amigos.
Eu estava tirando a mesa quando meu objeto de obsessão me abraçou por trás, prendendo nossos corpos e interrompendo meus movimentos. "Nosso jantar foi um sucesso completo", ela disse. Sorrindo, deixei minha cabeça cair sobre seus braços, fechei os olhos e, pela segunda vez naquela noite, fui muito feliz.
A carioca Milly Lacombe, 42 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com