Na cama com outra mulher
Milly Lacombe conta detalhes do que acontece com quem passa a noite ao lado de alguém do mesmo sexo
Os escabrosos detalhes do que acontece com o ser humano que passa a noite ao lado de alguém equipado com o mesmo aparelho sexual que o dele
O despertador toca às sete. Cinco minutos depois, o dispositivo snooze, criado por torturadores, inicia seu frenesi. Você, que está de costas para mim, geme, se vira na cama, joga metade de seu corpo sobre o meu, suspira e pega no sono outra vez. Mais cinco minutos se passam e o som estridente do alarme volta a incomodar. Você se mexe, geme um tico mais, joga um dos braços sobre meus ombros e usa seu corpo para afundar o meu no colchão. Antes do terceiro snooze, você abre levemente os olhos e me vê dormindo. Ainda com o corpo sobre o meu, começa a coçar mecanicamente meus braços, minha cabeça ou qualquer outra parte de mim que consiga alcançar. Como fazemos há sete anos, dormimos sem roupa, o que, se não por outro motivo qualquer, facilita o ritual da coçada. Em alguns minutos teremos que levantar, mas, como quero continuar a ser coçada, não abro os olhos, apenas indico por sons que estou gostando do carinho. Você diz “já volto” e sai da cama. Sei que está indo buscar as cachorras e por isso continuo na mesma posição. As cachorras hiperativas chegam pulando freneticamente, como se não nos vissem há meses. Você volta para a cama, se enfia embaixo do edredom e se embolota em meu corpo. As cachorras, depois de minutos de alegria incontida, finalmente ficam calmas e se estiram coladas a você. Em segundos, sei que você voltará a me coçar e a ideia me anima.
Viro a cabeça e olho para fora. Vejo a árvore que a gente tanto gosta balançando com o vento. Fico feliz que você tenha se acostumado a dormir com a persiana aberta, mas não digo nada, ainda estou esperando você voltar a me coçar. Me mexo na cama, te ofereço minhas costas, e você entende o recado, cravando em mim suas unhas lindas e grandes e fortes. Agora são quase sete e meia, e toda a pressão do dia já se faz sentir. Você para de me coçar e começa a me beijar. Eu viro para você, retribuo, e você deita sobre mim. A gente se vê e sorri. Você diz “bom dia”, eu digo “bom dia, meu amor”, e a gente volta a se beijar e a se acariciar. Depois de um tempo, você sai de cima de mim, joga seu corpo para o lado e avisa que vai levantar. Uso o meu corpo para afundar o seu na cama. Você ri, eu rio, você volta a me coçar. É inevitável que tenhamos que nos render ao dia, mas a gente se entrega com vontade ao exercício de adiar que o mundo lá fora nos invada. Você diz que agora vai levantar de verdade. Conformada, deixo você sair da cama. Você coloca uma roupa, chama as cachorras, que ainda estão aos meus pés, e sai de casa para levá-las para um passeio rápido.
Enquanto isso, levanto, lavo o rosto e vou para a cozinha. A mesa do café da manhã eu coloquei na noite anterior na sala, e a cafeteira já tinha sido devidamente programada para começar a preparar o café. Corto as laranjas, pego as cenouras e a beterraba na geladeira, começo a fazer o suco que você finge mais ou menos gostar. Quando você volta, o suco está quase pronto e seu mamão já está cortado em cubos e colocado à mesa. Você chega trazendo o jornal e vai se sentar. Sirvo o suco, tiro o potinho do mamão que você já comeu e começo a fazer o pão na chapa que você adora. Quando levo o pão para você, você diz que ele está lindo. Sento para ver você comer. Você passa o requeijão, corta algumas fatias de queijo branco, arruma todas elas sobre o pão e, em cima disso, coloca geleia de morango. Você diz que não gostava de salgado misturado com doce, mas que eu fiz isso com você. Isso, a persiana aberta, o ar-condicionado ligado e waffles. Atribui a mim tantas mudanças de hábitos, diz que eu fiz você ganhar quilos, mas não menciona o “dormir com mulheres”. Abro o jornal, bebo meu suco, começo a ler. Você levanta e vai buscar uma xícara de café. Peço para você tomar todo o suco, você diz que não quer mais tomar suco. Explico que o suco faz bem, você diz que sabe perfeitamente que o suco faz bem, mas que não vai mais tomar. Volta com a xícara de café, vem me dar um beijo, agradece por eu ter feito o suco. Pede uma parte do jornal e eu, relutante, dou. Você levanta com a xícara do café e vai acabar de se trocar.
Eu continuo na mesa, lendo o jornal. Você volta depois de 15 minutos, linda como sempre. Pergunta se a roupa está boa. A roupa sempre está boa, eu digo isso, você duvida e vai se trocar outra vez. Volta, pergunta se melhorou, eu digo que melhorou, mesmo sabendo que está tão boa quanto a anterior, você diz “viu como a outra não estava boa?”. Você vai até a mesa da cozinha e começa a recolher a papelada que deixou ali na noite anterior. Estala a língua nos dentes, reclama de alguma coisa que eu não consigo entender. Receio ter feito uma besteira e que a culpa pela estalada de língua seja minha, peço desculpas, digo que não vou mais fazer, você pergunta do que estou falando. Os papéis que você recolheu são extratos, documentos e contas do condomínio. Você, que é a síndica, leva tudo para analisar durante o dia. À noite, vai trazer a papelada de volta e jogar sobre a mesa da cozinha. Você então coloca suas coisas em duas ou três sacolinhas, pega a bolsa e avisa que está de saída. Vem me dar um beijo, me deseja um bom dia, mas eu não me manifesto porque sei que você, antes de sair de casa em definitivo, ainda vai voltar algumas vezes.
À noite tem mais
Você bate a porta da cozinha e, em dois minutos, abre outra vez. “Esqueci um casaquinho”, avisa, entrando para os quartos. “Você acha que vai fazer frio hoje?”, grita lá de dentro. Digo que vai, mas nunca sei, aliás, ninguém sabe, nem as pessoas pagas para saber, e tanto faz porque não importa o que eu diga, você vai pegar um casaquinho. Você dá outro tchau e bate a porta da cozinha, que se abre depois de um minuto. “Esqueci meu cartão de crédito, você sabe onde eu coloquei ele?” Digo para procurar no bolso da calça que usou ontem, você volta avisando que achou e vem me dar outro beijo. Agora parece que você está mesmo de saída. Na mesa do café da manhã, continuo a ler o jornal e a beber meu café, mas já pensando em tudo o que terei que fazer até de noite. São quase nove horas, o dia já nos invadiu, estamos entregues à crueldade do mundo, à dureza da vida. Só que em aproximadamente oito horas voltaremos a nos fechar em nosso casulo, dormiremos mais uma noite juntas e no dia seguinte vou acordar com você me coçando as costas. E tudo fará sentido outra vez.
A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com |