Na cama com dois homens

Um fim de semana com meus dois sobrinhos me fez sentir incrivelmente livre

por Milly Lacombe em

Eles chegaram às quatro em ponto. Quando tocaram a campainha, dei uma olhada rápida na mesa da cozinha para ter certeza de que não havia esquecido nada: bolos caseiros, macarrão, molho de tomate, sucos variados – estava tudo ali. E, no freezer, os picolés já descansavam enfileirados. Só então, com a convicção de que a casa estava preparada para recebê-los, dei uma ajeitada com as mãos no cabelo e fui abrir a porta. Entraram com
suas mochilas, cada uma contendo uma muda de roupas, pijama e escova de dentes. OK, pensei, então faríamos mesmo isto: um fim de semana só nosso, sem meu objeto de afeição, que tinha ido resolver um problema em nossa cabana nas montanhas, e sem os pais deles. Não havia mais volta.

“Divirtam-se”, disse minha irmã dando um beijo em cada um dos filhos e saindo, mas não antes de me lançar um olhar que entendi querer dizer “agora é com você, boa sorte, espero que sobreviva e que não me ligue até amanhã porque eu gostaria de descansar um pouco e você sabe como é raro que Marcelo e eu tenhamos um fim de semana só nosso, sem filhos, porque, afinal, faz 11 anos que Estela nasceu, e depois dela vieram Francisco e Marcelinho, e nós não dormimos uma noite inteira há muito tempo, então se vira aí que eu fui nessa”.

Com a retirada da genitora, lembrei que as próximas horas estavam garantidas porque o programa era ver a rodada do fim de semana, que aconteceria inteirinha no sábado por causa da eleição no domingo. Então, liguei a TV, ofereci comes e bebes, que eles negaram, mas não sem agradecer, e sentamos os três no sofá olhando para o monitor. Quando a partida do São Paulo começou, virei para o lado e vi cada um deles jogando alguma coisa em seus iPads. “Nós não íamos ver o tricolor de vocês?”, perguntei. “Estamos vendo, Milly”, respondeu o menor com convicção, mas sem tirar os olhos do tablet. E então entendi que meninos de 9 e 7 anos não conseguem fazer uma coisa de cada vez.

Tudo ao mesmo tempo

Quando o mais velho cansou do tablet, perguntou se eu sabia lutar boxe, já levantando do sofá e ensaiando alguns movimentos. Respondi que tinha feito boxe durante alguns anos e que tinha até um par de luvas. Imediatamente entendi que havia feito uma besteira, porque ele me obrigou a buscar o par de luvas e a mostrar golpes variados. Depois de algum tempo, o menor perguntou se eu queria brincar de escalar a seleção do Campeonato Brasileiro, e eu achei que era uma boa oportunidade para me esquivar do boxe, que já tinha me exaurido, sem saber que escalaríamos pelo menos três dúzias de seleções consecutivamente, indo da brasileira para a mundial.

Quando, passadas quase cinco horas, a rodada acabou, pedi que eles fossem tomar banho e disse que iria preparar o macarrão, acreditando que teria agora alguns minutos de tranquilidade. Mas Francisco tomou banho em 40 segundos e Marcelo em 50, porque demorou para regular a água. Diante de minha perplexidade, Francisco explicou com palavras e gestos: “O que tem para demorar num banho? Entra, se molha, passa xampu, esfrega, passa sabonete, esfrega, sai”. De fato, o “se seca” era coisa que estava fora da lista.

Pingando pelo apartamento, foram até a cozinha me ver fazer o macarrão. Comemos na mesa e eu sugeri que víssemos um filme na sequência, e já na cama, imaginando que dormiriam rapidamente. Mas o único filme mais ou menos adequado em minha dvdteca era O diabo veste Prada. Incrivelmente, toparam. “Pera, vou buscar o iPad”, disse Marcelo. “Pra quê?”, perguntei. “Ué. Pra jogar enquanto vejo o filme.” “Não, aqui em casa quando a gente vê filme a gente só vê filme”, respondi. Mais incrivelmente ainda, ele acatou.

Hora de dormir?

Deitamos os três em minha cama, eu no meio e com a certeza de que dormiriam em minutos. Uma hora depois, ainda estavam em estado de vigília. “Eles vão ficar juntos no final?”, queria saber Francisco de cinco em cinco segundos. “Não sei, não sei”, respondia. “Vamos ver o filme, Francisco”, implorava. Mas aí se deu o ocorrido. De um salto, Francisco sentou na cama, olhou bem para mim e disse: “Você é gay há muito tempo?”. Naturalmente, nada havia me preparado para aquilo. De “estamos quase dormindo” para “vamos falar a respeito de sua sexualidade” em dois segundos.

Enquanto tomava fôlego para responder da maneira mais clara e honesta possível, Marcelo, que parecia estar mais sonado, deu um pulo, sentou na cama e gritou levantando os bracinhos: “Você é gay?”.

Como não podia dar um pause na vida e correr para telefonar para minha irmã em busca de uma luz, tomei ar e expliquei a eles que eu era gay há muito tempo. Levemente intrigado, Marcelo quis então confirmar o que era mesmo ser gay, e eu fiz meu discurso: expliquei que no mundo havia mulheres que gostavam de homens, homens que gostavam de mulheres, mulheres que gostavam de mulheres e homens que gostavam de homens, e que eu era uma mulher que gostava de mulheres. A essa altura estávamos os três sentados na cama, era mais de meia- noite, meu coração parecia uma máquina de lavar ligada no modo centrifugar dentro do peito e eu tentando me preparar moralmente para as mais variadas reações, inclusive para a pior, que é como o mundo conservador nos alerta para episódios como esses.

Depois de um longo período de silêncio, durante o qual permaneceram sentados me encarando, talvez alheios ao suor em minha testa, Marcelo me abraçou, me deu um beijo e, sem dizer nada, me fez deitar com ele, voltando a se enroscar todo em meu corpo. E Francisco, também deitando, soltou um “legal”, mais para ele do que para mim.

Fiquei ali observando meus dois homenzinhos se deixando levar pelo sono. Estava espremida entre eles, sem poder me mexer, sem conseguir mover meus braços nem sequer para apagar a TV ou coçar o nariz. E, embora estivesse claustrofobicamente prensada por aqueles dois corpinhos, me sentia escandalosamente livre.

A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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