Meu cabelo, minhas regras
Como a padronização do cabelo feminino é um retrato do racismo e do machismo cotidiano
“Quer tirar uma foto, querida?”, pergunta Wladia Goes ensaiando um carão toda vez que alguém vira o rosto na rua para encarar seus cabelos. Além do crespo, a figurinista e produtora de moda baiana de 46 anos assumiu seus fios brancos – que começaram a chegar aos 15 –, dando vazão a um movimento crescente de mulheres pró-autonomia capilar, ou seja, que conclamam que cabelos alheios não dizem respeito a mais ninguém. “É uma libertação indescritível”, diz Wladia em conversa em vídeo com a Tpm, com um kimono amarelo, unhas pintadas com cores intercaladas e um sorriso largo no rosto.
Mas nem sempre foi assim. Quando criança e inserida em uma escola composta majoritariamente de alunos brancos, em Pituba, bairro de classe média alta de Salvador, sua referência de cabelo bonito nunca fora o seu. Não à toa, ela e a irmã passavam horas e horas em salões alisando os fios, desde seus 12 anos, levadas por sua mãe. Foi somente após entrar no Grupo Olodum e ter contato mais profundo com a sua negritude e ancestralidade que decidiu passar por um processo de transição capilar. “A transição é puxada, não é fácil pra ninguém. Porque vai nascendo o cabelo crespo enquanto embaixo fica o alisado. É preciso ter paciência”, conta.
Ruiva por muitos anos, Wladia cansou de pintar as raízes de vermelho e assumiu o grisalho, em sua segunda transição. “Sempre tive uma autoestima muito elevada. Mas depois dos brancos, tenho me sentido cada vez mais incrível. Amo quem me tornei.” Ela ainda critica o machismo ao lembrar que os fios brancos são interpretados de formas bem diferentes na sociedade. “Se a mulher não faz a unha, não se depila, não faz a sobrancelha e não pinta os brancos, é sinal de desleixo. A mulher tem que agradar o homem, e não a si. Já o homem veste qualquer coisa, deixa cabelo branco e ainda são charmosos”, critica.
Em seu Instagram, Wladia recebe inúmeras mensagens de mulheres que desejam assumir os brancos, principalmente após a pandemia, mas são desencorajadas pelos próprios maridos, filhos ou até mesmo colegas de trabalho. “Escuto diariamente que sou uma inspiração. Meu recado é: se quiser assumir, assuma, deixe essa escravidão.”
Belá Bacelar, 30, também já passou por algumas transformações. A atriz e cantora já teve cabelo relaxado, cacheado e, agora, raspado. Quando adolescente, era chamada de “samambaia” e de “leãozinho” na escola e enxergava seu cabelo muito aquém dos padrões de beleza impostos na TV, filmes e revistas. Aos 15 anos, se submeteu a um relaxamento que danificou muito seus fios e deixou seu cabelo totalmente desconfigurado. Foi então que conheceu um salão especialista em cacheados e começou a usar produtos específicos para tratá-lo.
Somente aos 19 anos, ao ingressar na faculdade, passou a gostar de seu cabelo. “Estava em um círculo de amizades em que as pessoas achavam meu cabelo bonito. Engraçado como às vezes precisamos que o outro nos valide”, conta Belá. Para ela, aceitar o próprio cabelo está ligado a aceitar as raízes e sua história: “O que nos faz especial é justamente a diferença. Essa força interna de olhar para quem a gente é nos fortalece.”
Maternidade
Ao se tornar mãe de Ágata, que está com 8 meses, Belá passou por uma série de questionamentos, e seu cabelo comprido já não fazia jus à nova identidade. Ao se olhar no espelho, não se reconhecia. Ela então aproveitou o período de queda capilar, bastante recorrente no pós-parto, para raspar. “A maternidade me trouxe outra vida. Tanto a minha como a da minha filha. É como se tivesse zerado a minha imagem para mim mesma. Quem eu fui já não fazia sentido. Raspar o cabelo foi uma maneira de me enxergar de uma nova forma e de ser enxergada com um novo olhar. Me sinto mais empoderada”, revela.
Quebra de padrões
O cabelo entendido como bonito sempre foi o liso e o comprido – se for loiro, melhor ainda. A psicóloga Milena Reis, 37, fundadora da Clínica Preta, explica que esse padrão de beleza eurocêntrico é uma das formas do exercício do racismo. “Existe uma hierarquia de belezas, de corpos, de etnias – e de cabelos. As características de pessoas não brancas não são vistas como bonitas. É preciso descolonizar o pensamento”, acredita.
Outro fator que contribui para a ditadura desse padrão de beleza imposto, segundo ela, é o machismo estrutural. “Desde muito cedo, as meninas têm que usar brincos, laços e até esmalte. Ou seja, precisam performar uma feminilidade – algo que perdura até a vida adulta. A mulher é objetificada, a serviço dos homens. Elas não podem usar cabelo curto, nem branco, ou seja, não podem nem envelhecer em paz”, critica.
Milena, que também passou por um processo de transição capilar, lembra que desde os 8 anos era levada por sua mãe para alisar os cabelos. “Isso era muito comum na época e é um indicativo de como a sociedade se organizava. Ao mesmo tempo, era uma tentativa das mães de amenizar o julgamento externo com os cabelos crespo das filhas, o que também acabava por prejudicar a autoestima das crianças, que eram ensinadas que não podiam ser quem eram”, explica a psicóloga.
Liberdade
O fundamental é a mulher poder escolher o cabelo que quiser. Pode ser crespo, alisado, com trança, raspado, comprido, branco ou tingido. “Não importa. Você apenas precisa se sentir bem. Se você não se sente bonita com cabelo grisalhos, você pode, sim, pintar. Senão também vira uma ditadura ao contrário. Temos que ser livres para escolher o cabelo que desejarmos. Pouco importa se os outros gostam ou não. Nossa beleza não diz respeito ao outro, somente a nós.”