Meninas da portela
Conheça as tias Áurea, Surica, Doca e Eunice - a majestade da Velha Guarda da Portela
Estas senhoras de 56, 67, 75 e 88 anos já rebolaram muito nesta vida. Foram elas que, vestidas dos pés à cabeça, decidiram muitos dos sambas que caíram na boca do povo. Conheça as tias Áurea, Surica, Doca e Eunice - a majestade da Velha Guarda da Portela
Mestres-salas e ritmistas que nos desculpem, mas sem elas não tem samba. Eunice, 88, Doca, 75, Surica, 67, e Áurea, 56, as mais respeitadas senhoras da Velha Guarda da Portela, são do tempo em que, para uma mulher fazer parte do batuque, não precisava rebolar. O que contava era ser afinada, ter talento para uma boa feijoada e receber os compadres no quintal de casa. Ser gostosa não era pré-requisito, tampouco vestir pouco pano. Na época em que se iniciaram no samba, na década de 40, o clima de uma roda era familiar. Isso porque Paulo da Portela, que fundou a escola em 1926, era um sujeito de respeito. Quanto mais vestidas as moças, mais faziam seu gosto. "Quero todo mundo com os pés e o pescoço ocupados!", dizia, reforçando a importância do sapato e da gravata - ou da gola, no caso das mulheres.
Sem elas, a Velha Guarda da Portela seria como um corpo sem vida. Eram as vozes femininas que definiam o que seria cantado nos desfiles."A gente fazia um samba, mas, se elas não quisessem cantar, não adiantava. Se gostassem, aquilo se tornava um sucesso", confirma Monarco, um dos principais compositores da Portela, no filme O Mistério do Samba, de Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda - com roteiro de Marisa Monte -, sobre a Velha Guarda da escola, em cartaz a partir do dia 29 de agosto.
Se ainda fosse vivo, Paulo talvez não fizesse gosto em ensaiar as garotas que hoje saem na Portela. Elas não passam por testes, como fizeram as senhoras para entrar na Velha Guarda. Muitas nem sequer sabem cantar."Meu teste foi cantar acompanhando
o cavaquinho do finado compositor Manacéa", lembra Surica. Ela, Doca, Eunice e Áurea, representantes autênticas da Velha Guarda mais antiga das escolas de samba, sempre levaram uma vida humilde, trabalhando demais e ganhando de menos. Como acontece com a maioria da população pobre do país, suaram muitas camisas, criaram muitos filhos, viram alguns deles morrer e não tiveram uma alimentação saudável à disposição. Hoje, pagam a conta com o corpo acima do peso, dificuldade para andar ou doenças cardíacas.
Mas, apesar de nem tudo ser poesia na vida delas, essas senhoras mantêm o entusiasmo e a educação dos tempos de Paulo. Levam a reportagem da Tpm até o portão e se desculpam "por qualquer coisa". Sem sombra de sucessoras, deixam claro que o mundo delas ainda é hoje.
Ainda é cedo
"Não tenho nada para dizer de antigo, gosto do presente." A frase é de Eunice, 88, a mais velha tia da Portela, também considerada a dona da voz mais bonita e rainha do miudinho (passo tradicional no qual não se tira os pés do chão). Ela entrou para a Velha Guarda há
33 anos e, apesar de não desfilar há sete, protagoniza uma das cenas mais emocionantes do filme O Mistério do Samba ao ensinar a dança a crianças. Agora Eunice está magrinha por causa de uma doença no coração.
Sentada com a coluna ereta e as mãos sobre os joelhos, ela conta como tem passado os dias: "Como e durmo, minha filha". Já perdeu a conta de quantos anos viveu com o portelense pai de seis dos seus sete filhos, mas aproveita que não casou no papel para brincar: "Sempre fui Eunice Fernandes da Silva, solteira e feliz", diz, sorrindo de lado enquanto a filha a repreende. Quando jovem, ganhava seu dinheiro como costureira: produziu das cortinas da casa às fantasias da Portela por dez anos. Apesar de sofrimentos como o que viveu há 14 anos, quando teve um filho assassinado pela polícia suspeito de ter matado a mulher, ela ainda expressa a elegância que fez sua fama. "Sempre resolvi as coisas na palavra. Negócio de brigar, não.Nunca dei confiança." Isso vale também para o ex-marido, que, viúvo da segunda mulher, visita Eunice."Só me apaixonei pela minha vida. E por essa continuo apaixonada", declara, antes de voltar ao descanso.
A dona da vila
A plaquinha "Cafofo da Surica" sinaliza que estamos na casa da maior figura da Velha Guarda da Portela. "Minha avó dizia que suriquinha era um objeto pequeno e roliço", fala, com voz vigorosa, a mulher de 1,47 metro que quer chegar aos 80 quilos depois de atingir 92. Para isso, Iranette Ferreira Barcellos, 67, parou de beber. Na Velha Guarda desde 1980, 14 anos depois de cantar o samba-enredo campeão "Memórias de um Sargento de Milícias", de Paulinho da Viola, ela já foi lavadeira, operária e vendeu churrasquinho na frente da escola de samba. Desfilou na Portela pela primeira vez aos 4 anos, presa à cintura da mãe e protegida pelo pai. Áurea, filha do líder Manacéa e colega de banda de Surica, destaca o temperamento "espontâneo e espoleta" da sambista, com quem seu pai tinha bastante intimidade. "Quando qualquer uma das tias ia pro boteco antes do show, ele ralhava só com ela, como se fosse seu pai", conta. Criada pelos avós depois de perder a mãe soterrada em casa, e pensionista do pai, que era ferroviário, Surica mora com uma irmã e o cachorro, Pink, que morde as visitas que o acariciam. Em 2004, ela lançou seu primeiro CD solo. Nunca fez questão de marido, apesar de ter namorado muito. "Homem nenhum agüentou ficar do meu lado por causa do samba. Agora procuro um companheiro, mas não aparece um cristão que preste", desabafa, enquanto frita salgadinhos para a reportagem da Tpm, que resolve ficar mais um pouquinho.
O QUINTAL DA MARISA
Filha do diretor cultural da Portela, Marisa Monte cresceu ao som da Velha Guarda. Há 15 anos, mergulhou na memória e nas rodas desses sambistas. Gravou e produziu CDs e, agora, assina o roteiro do filme O Mistério do Samba.
Nesta entrevista exclusiva, a cantora revela como conquistou passagem livre nos portões e na história dessas tias
Tpm. Em um momento do filme, um dos sambistas conta que, caso o samba não caísse no gosto das tias, não emplacava. Qual a importância dessas mulheres para a Velha Guarda?
Marisa. Apesar de a maioria absoluta dos compositores ser homens, elas eram inspiração e co-autoras da existência de todos eles. Quando um samba novo chegava à quadra, se fosse cantado pelas mulheres logo no primeiro momento, as vozes femininas davam vida e as eternizavam como clássicos. Toda a comunidade aprenderia. Músicas que falavam da mulher de forma indelicada não tinham vez. Os homens sabiam disso.
No filme fica claro o quanto você é respeitada pela Velha Guarda Por exemplo, quando entra sem cerimônia na casa de uma das tias. Como conquistou essa proximidade?
Desde 1993, fizemos muitos shows juntos. Os sambistas gravaram comigo músicas como "Ensaboa" [no álbum Mais] e "Essa Melodia" [em Cor de Rosa e Carvão]. Já produzi um álbum deles [Tudo Azul] e o álbum do Argemiro Patrocínio [em 2002]. Desde 1999, estou envolvida com o documentário O Mistério do Samba. São muitas horas de vôo. Essa intimidade e confiança só acontecem com o tempo.
O que aprendeu de mais legal - de música e de vida - com essas mulheres?
São mulheres guerreiras, que encaram as dificuldades com graça e poesia. São exemplos de força e poder feminino. O convívio com elas é um deleite para qualquer mortal.
Conte um "causo" que tenha ficado guardado pra sempre na sua memória.
Quando meu filho nasceu, dona Doca veio de ônibus, trazendo um enxoval de presente. Fiquei muito comovida com o carinho e com a visita. Nunca vou esquecer. Uma conversa com ela, Surica, Áurea ou dona Eunice é uma aula. É pra ser vivido, não dá pra explicar.
Essas mulheres fizeram tanto pelo samba e hoje são tão pouco reconhecidas. Por quê?
É o mistério do samba.
Ela sabe o que diz
Áurea cresceu vendo o pai, o consagrado compositor Manacéa, escrever músicas no quintal de casa. Nascida de um casamento que só acabou quando ele morreu, coisa rara nesse meio, a garota aprendeu a cantar as músicas no terreiro, onde era levada pela mãe, dona Neném."Papai achava que samba era coisa pra homem", lembra. E há 20 anos provou que ele estava errado ao assinarem juntos "Volta Meu Amor". Aos 56, Áurea reproduz a timidez do pai e transparece no discurso pausado e articulado a educação que teve. E agora entende a preocupação de Manacéa. "Ele tinha medo que a gente se encantasse pelo samba e não quisesse trabalhar." Para a tranqüilidade do patriarca, as três filhas estudaram enfermagem. E, para seu orgulho, há dez anos Áurea faz parte da Velha Guarda. Integrante da Portela desde a década de 60, ela acredita que as mulheres cada vez menos vestidas na avenida são conseqüência da comercialização do samba. "Na época em que era marginalizado, havia mais decência. Pelo menos na Portela, o samba era digno, seguro e tinha moral." Casada há 11 anos, ela nunca quis ter filhos, mas se diz avó dos sobrinhos- netos. Desde que Manacéa morreu, Áurea nunca mais compôs. "Ele dava opiniões nas músicas. Sem esse apoio, me desestimulei." Agora, que acaba de se aposentar como assistente social e passar o posto de mais nova componente da Velha Guarda para Neide Sant'Anna de Albuquerque, ela quer retomar a vocação.
Mãe do pagode
Foi Jilçária Cruz Costa, a Doca, e seu ex-marido, Altair, que, há 34 anos, inventaram o pagode: ensaio da escola fora da quadra, com direito a cerveja e comida. Zeca Pagodinho, então com 17 anos, era um dos freqüentadores e descobriu a vocação no quintal da vila em que morava o casal, no subúrbio carioca de Madureira. Única filha mulher de dona Albertina, Doca seguiu o exemplo da mãe e nunca pediu pensão a Altair, quando ele a abandonou com seis filhos. A sambista nascida no morro da Serrinha, em Madureira, trabalhou como tecelã, empregada doméstica e vendeu sopa. Hoje, com apenas três filhos vivos, ela não perde o humor. "Quando encontro um homem, falo logo na mulher e na mãe, aí ele não vem com conversa fiada." Foi com Beth Carvalho que fez coro pela primeira vez, num disco de 1978. Desde então, Doca já trabalhou com Clara Nunes, Marisa Monte e o próprio Zeca Pagodinho. Entrou para a Velha Guarda nos anos 70 e comemora as visitas a França, Itália e Estados Unidos. No apartamento em Madureira que financiou em 2002, caminha com dificuldade até o telefone, que anuncia mais um dos muitos convites para comparecerem pagodes. Raramente ela aparece. Há 20 anos parou de fumar, e, agora, com uma doença que chama de "coração grande" (miocardia), largou a bebida e o jantar. Mas não perdeu o jeito malandro de contar "causos". Sem se abalar com os 75 anos completos, ela ainda solta a voz e o samba nos pés em ocasiões especiais.