Meio século de Barbie

Entre fashion dolls, criávamos histórias de amor, traição, ciúmes e disputa entre amigas

por Redação em

 
Passei parte da minha infância brincando na casa da vizinha. Era uma mulher bonita, parecia saída de um filme americano e não faria feio num bairro de casinhas brancas da Califórnia. Esposa de piloto, tinha acesso a todos os objetos que o boom de consumo pós-guerra tornou subitamente essenciais. Ela levava no mínimo uma hora para emergir do seu banheiro, deixando espalhado um rastro de cosméticos de cheiro bom. Grandes olhos azuis, sempre com delineador, pancake passado com esmero de photoshop, boca duas cores, mais escura por fora e clara por dentro. Suas duas filhas eram minhas parceiras na faina das bonecas. Foi ali que conheci a Barbie.

Era o início da década de 70, no Brasil brincávamos com uma versão menos anoréxica e mais juvenil, a Susi, mas elas possuíam Barbies. O corpo da Barbie era esguio, o busto lembrava um tórax de chester, desproporcional à finura da silhueta, seguramente fruto da obsessão americana pelo busto. A Susi foi lançada em 1962 (reinando sozinha até 1985) e respondia mais ao padrão de beleza local.

Barbie e Susi são fashion dolls, minimanequins do mesmo tipo que era usado para difundir tendências da moda, mas estas eram protótipos, não brinquedos. Foi vendo a filha brincar com bonequinhas de papel que a esposa de um fabricante de brinquedos teve a idéia de fazer uma versão tridimensional, para ser vestida e poder encenar com ela tramas de boneca-mulher. Isso constituía uma diferença, pois o padrão (que ainda usamos) eram bonecas “filhas”, um treino para a maternidade e carro-chefe da identidade feminina até então. Com minhas vizinhas, criávamos para essas bonecas histórias de amor, traição, ciúmes e disputa entre amigas. Elas podiam até constituir família, mas estavam ocupadas mesmo era com “eles”. Infelizmente não possuíamos nenhum Ken, então tínhamos que nos contentar com uma Pedrita com bigode e algumas Susis carecas. Mas isso não impedia que nossas histórias de amor fossem calientes.

Bonecas: alter-egos femininos

Entre minha vizinha fascinante e nossas bonecas que já não eram filhas, mas sim alter-egos femininos, fui aprendendo a me maquiar e a querer ser mulher antes ou independente da maternidade. Barbies e Susis são mulheres jovens. Eu não admirava a mãe das minhas amigas pelo bem que administrava sua casa, mas sim pelos seus rituais de beleza. Com as bonecas aconteceu o mesmo.

As mulheres-bibelô dos subúrbios americanos da década de 50 viviam uma vida Avon e eram dedicadas donas de casa. Mas também foi nessa época que sutiãs foram queimados e Betty Friedan as convocou a sair do imobilismo e da depressão. Em suas pesquisas, a teórica feminista questionou o que é que elas querem afinal, já que aquelas que pareciam “ter tudo” sentiam-se tristes. As respostas vieram com o tempo: elas querem realizar-se profissionalmente, constituir uma família que não as abafe como indivíduos, ser atraentes e eternamente joviais. Coisa pouca... Pelo menos, ser jovens e bonitas treinamos com nossas Barbies e Susis.
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