O exato instante em que toda a paisagem muda

Eu estava distraída, essa espécie de suprafelicidade disfarçada de desatenção, aquele segundo antes das chamadas da vida

por Maria Ribeiro em

Eu estava em Lisboa. Era junho. Era do outro jeito. E era a primeira vez. Já tinha tido o céu, as ladeiras, as roupas na janela, o elétrico, o mosteiro, o pastel de nata. Já tínhamos feito compras naqueles armarinhos antigos e visto a casa onde morou o Mário de Sá Carneiro. Eu entrei na van pra ir a uma premiação de cinema, pensando “que legal, vou conhecer o Luiz Bolognesi e ver o filme dele”. Eu estava procurando 2 euros pra comprar um chocolate, achando bonita a camisa do meu marido. Distraída, essa condição suave da existência, espécie de suprafelicidade disfarçada de desatenção, aquele segundo antes das chamadas da vida. E, então, Ana ligou.

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Ana é minha sobrinha-filha de 22 anos, com quem dividi o nascimento dos meus filhos, a morte do meu pai e o melhor crepe de Nutella de Paris. Ana é o meu amor, minha grande parceira na família, a minha garota de Saquarema que cresceu e virou atriz – mas esse é outro texto e se bobear um romance. Ana ligou e eu não atendi pra não falar no celular no meio de um monte de gente – e também pra não pagar interurbano – e aí ela escreveu. “Inês nasceu, tia. Tá todo mundo bem.”

Alguém nascer e estar todo mundo bem talvez sejam as duas maiores invenções de toda a história da humanidade. Eu chorei. Primeiro chorei de alegria, e pensei que meu irmão Otávio tinha mesmo que ser pai, e que emocionante vai ser ver isso, vislumbrei. Depois eu chorei outro sentimento que não sei definir exatamente, mas que talvez tenha a ver com a Ana ter sido a portadora da notícia da chegada da Inês, uma sobrinha recebendo a outra, a nossa meninice, a minha e a delas, cada uma com a metade da idade da outra. E, por fim, chorei porque comecei a discar pra casa do meu pai, 2274-0830, e só no número oito lembrei que ele não estaria mais naquele telefone nem em nenhum outro lugar que não dentro de mim, ou de quem quisesse guardá-lo. E aí doeu um pouco, meu pai não conheceria a Inês, sussurrei.

Isso foi há três anos. Pensei no exato instante em que toda a paisagem muda de filtro porque de volta à capital portuguesa senti o entorno mudar quando soube da morte do Domingos e do renascimento da Camila. A gente não era próximo, mas em todas as vezes que conversamos senti que havia ali a humanidade inteira, e uma simplicidade comovente. Domingos era um palhaço-gato. Puta sacanagem.

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Mas agora é o presente. Minha Lisboa é outra, eu sou outra, estamos em setembro e Camila vai ficar bem. Inês tem 3 anos e Ana vai pra Ásia. As ladeiras seguem com casas coloridas e bandeiras estendidas nas sacadas e, entre um tropeço e outro, a gente segue esperando uns telefonemas bonitos, de preferência dizendo “que está todo mundo bem”.

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Créditos

Imagem principal: Rimon Guimarães

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