Marcas que o tempo não cura
No Brasil, uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto, seja ele normal ou por meio de cirurgia
O Brasil é um dos líderes de cesáreas no mundo; uma em cada quatro mulheres sofre violência no parto, seja ele normal ou por meio de cirurgia. Mais que cicatrizes, as personagens que constroem esses dados carregam memórias que marcaram suas histórias com violência e humilhação
Aos 26 anos, a paulistana Sara Ollebar já sofreu todo tipo de violência possível em seus dois partos. Em sua primeira gestação, optou por parto normal, que foi realizado na rede pública, em um hospital de São Paulo. Na ocasião, o marido de Sara foi proibido de entrar no quarto. “Me largaram sozinha, cheia de medos e inseguranças. Fui levada para sala de cirurgia e me fizeram um corte monstruoso, levei 8 pontos de um lado e 10 do outro”.
Em sua segunda gravidez, ela estava com 37 semanas quando foi internada para dar luz à Lara. Em uma espera normal, o prazo recomendado por obstétras é de 40 semanas. Convencida de que desejava um parto normal, Sara foi surpreendida por uma cesárea, só aceita por ela depois de ameaças das enfermeiras. “Disseram que meu bebê estava em sofrimento fetal e morreria se a cesariana não acontecesse. Por causa da pressão, concordei com a cirurgia”, relata.
Quando Lara nasceu, foi direto do ventre de Sara para a UTI. “Foi a maior angústia que já senti na vida. Depois de levar os pontos, me colocaram em um quarto sozinha e fiquei lá das 19h às 5h, tremendo feito bicho. Não conseguia mexer o pescoço. E eu ao menos sabia onde estava meu bebê”, recorda. Ela levou dias para ver e ter o primeiro contato com a filha. “Só dez dias depois fui autorizada a amamentá-la.”
Meses após o parto, Sara estava não tinha dúvidas: a internação de Laura na UTI só foi necessária pela precocidade do parto, que pelas suas investigações, não tinha razão para acontecer. "Mas só soube disso porque fui procurar respostas. Conversei com doulas, parteiras e outros obstétras. Acabei entendendo que meu parto foi precoce sem motivos justos. Os exames apontavam que Laura estava bem. Tê-la com 37 semanas foi precipitado", defende-se.
Hoje, a paulistana está com 32 semanas de gestação e espera Alfred “totalmente segura e confiante”. Seu único medo: “ouvir a palavra 'hospital'". “Até hoje meu coração acelera se tenho que entrar em um”, diz.
"Depois de levar os pontos, me colocaram em um quarto e fiquei lá das 19h às 5h, sozinha, tremendo feito bicho. Não conseguia mexer o pescoço. Nem ao menos sabia onde estava meu bebê", Sara Obellar
A fotógrafa Letícia Valverdes, 41 anos, nunca sentiu que precisava aprender tanto sobre parto como quando se deparou grávida e morando no Brasil. Era sua terceira gravidez - os dois primeiros filhos nasceram na Inglaterra, onde, segundo ela, “o sistema público encoraja a assistência de parteiras no pré-natal e no parto, e só medicaliza o procedimento quando de fato é necessário”.
Ter seu terceiro bebê no Brasil, mais precisamente em Ubatuba, litoral de São Paulo, testou os limites de Letícia. “Parir no Brasil é muito trabalhoso. É preciso ser PhD em parto para não ser forçada a nada. Temos que estar informadas, escoladas, certas do que queremos e do que, junto com os nossos bebês, somos capazes, e usar destes conhecimento e instinto para não sermos des-empoderadas”, conta.
Ao mesmo tempo que foi surpreendida ao precisar vivenciar seu terceiro parto no Brasil, Letícia teve sorte de carregar consigo anos de feminismo nas costas. Ela explica: "foi a experiência com o movimento que me livrou de violências pesadas na gestação e no momento de parir". A partir daí, ela começaria uma saga atrás de um parto humanizado. Para ela, a única forma de dar a luz, se respeitando e sendo respeitada. No caminho, conheceu mulheres que chegaram até o parto humanizado depois de viver experiências traumatizantes. Letícia decidiu que elas seriam suas próximas personagens. “Sou grata à vinda do meu terceiro filho em minha terra natal, pois na busca por um parto humanizado encontrei a vontade de registrar mães e gestantes com seus corpos e com os sentimentos que a maternidade traz. As marcas deixadas pela maternidade no corpo e na alma.” Então surgiu a série fotográfica Birth Marks - Marcas de Nascença, e Leticia conheceu histórias de abuso e humilhação, relatos que constroem estáticas duras sobre violência obstétrica no país.
Uma em cada quatro brasileiras sofre violência no parto, seja ele normal ou por meio de cirurgia. Os números são da pesquisa “Mulheres brasileiras e Gênero nos espaços público e privado”, divulgada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo. O estudo ainda mostra que os abusos mais comuns são maus-tratos verbais com a gestante, em formas de gritos e hostilidade; procedimentos dolorosos sem consentimento ou informação; falta de analgesia (anestesias que podem ser oferecidas a pacientes em qualquer momento do parto, sem prejuízo de sua evolução) e até negligência.
Ainda, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2010, o Brasil e a China foram responsáveis por metade das cesáreas realizadas no mundo. Entre 2010 e 2013, a pesquisa "Nascer no Brasil", da Fiocruz, mostrou que 53% dos partos na saúde pública foram cirúrgicos. Bem acima do limite máximo recomendado pela OMS, de 15%. Na rede privada, o índice sobe para 83%, chegando a 90% em algumas maternidades. Cesárea deixou de ser um recurso para salvar vidas para virar sinônimo de parto. “No Brasil, os conceitos de parto e cesárea andam juntos”, indigna-se Letícia.
Entre 2010 e 2013, 53% dos partos na saúde pública foram cirúrgicos. Bem acima do limite máximo recomendado pela OMS, de 15%. Na rede privada, o índice sobe para 83%, chegando a 90% em algumas maternidades.
A mais recente série da fotógrafa foi feita no último 13 de abril, no Largo São Francisco, em frente à Faculdade de Direito da USP, na capital paulistana. Suas personagens dessa vez estavam ali para protestar por Adelir – que em primeiro de abril foi surpreendida por oito policiais armados e um oficial de justiça munido de uma liminar. Adelir estava em pleno trabalho de parto em sua residência, a 1h30 da madrugada, quando eles chegaram.
Letícia está acostumada a violência obstétrica. Fotografou muitas mulheres nos últimos anos. Ouviu de tudo, viu cicatrizes de arrepiar a espinha. Mesmo assim, se viu espantada quando soube da história de Adelir. Participar da manifestação do dia 13 era um passo obrigatório de sua caminhada. “O caso da Adelir surpreendeu pela audácia e arrogância da médica em achar que tinha direitos sobre o corpo de Adelir e de sua filha. Mas não necessariamente surpreendeu a todo mundo em seu horror (e que horror) pois quem ouve histórias o tempo todo já ouviu de tudo. Tem muita gente sofrendo em silêncio Brasil afora.”
Adelir, 29 anos, foi retirada de sua casa, na zona rural do município de Torres, Rio Grande do Sul, e obrigada a entrar em uma ambulância. Se não entrasse prenderiam seu marido, Emerson Guimarães, 41 anos, técnico em manutenção industrial. Apavorada, com contrações a cada cinco minutos e preocupada com o susto de seus outros filhos pequenos, Adelir foi escoltada até o Hospital Nossa Senhora dos Navegantes. A Justiça do Rio Grande do Sul determinou que ela, grávida de 40 semanas, fosse submetida a uma cesariana, mesmo contra a sua vontade. A medida coercitiva foi expedida na noite de 31 de março, após orientação de uma médica do hopital. Adelir acabou tendo seu terceiro filho, uma menina, na terça-feira, dia 1 de abril.
Segundo Ana Lúcia Keunecke, advogada e diretora jurídica da Artemis (organização comprometida com a promoção da autonomia feminina e prevenção e erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres), o caso de Adelir é inédito no Brasil. Nunca uma brasileira passou por situação parecida até então. “Não por acaso, o episódio causou indignação no país por ser a primeira vez que a decisão de uma mulher na hora de parir sofreu interferência direta da Justiça”, explica. A advogada acredita que a repercursão do caso é notória e marca a história obstétrica brasileira. "Apesar de uma situação horrível, é mobilizadora. É triste, mas às vezes é necessário um episódio assim para que as pessoas acordem. Para que possamos mobilizar governantes e mudar o cenário do parto no país."
Ana foi certeira em sua opinião. De alguma forma, as coisas começaram a mudar. No último dia 7, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados debateu a violência obstétrica no Brasil. A audiência é fruto do caso Adelir.
O debate foi proposto pelo deputado Jean Wyllys a pedido da própria ONG Artemis, e teve a participação da Frente Parlamentar em Defesa dos Direitos Humanos e Minorias, do Ministério da Saúde, da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República e da própria Adelir, dentre outros agentes do governo e da sociedade civil.
"O parto natural e humanizado aproxima a mãe do bebê e deve ser, sempre que seguro, recomendado. Toda mulher deveria poder escolher a melhor forma de parir", Giselle Leal
A bióloga Gisele Leal, 37 anos, compara sua história à de Adelir. Sofreu na pele, ouviu ameaças, por sorte não teve o mesmo desfecho que a gaúcha mas também carrega suas cicatrizes. Por causa delas, abandonou a carreira de gerente de qualidade em uma grande empresa e se torbou doula. Ainda, criou o site Mulheres Empoderadas, onde divide tudo o que passou em suas gestações e ainda publica relatos de partos humanizados. A ideia da página é incentivar outras mulheres a desmistificar o parto natural e, ao mesmo tempo, informar a real necessidade de uma cirurgia cesariana. "Precisamos ser informadas. Fomos culturalmente ensinadas que cesarianas são soluções para qualquer mínima dificuldade de uma gravidez. Não são. O parto natural e humanizado aproxima a mãe do bebê e deve ser, sempre que seguro, recomendado. Toda mulher deveria poder escolher a melhor forma de parir. E mais, independentemente dela, ser respeitada acima de tudo."
Quando é violência obstétrica?
Os casos de Leticia, Adelir e Sara são mais comuns do que deviam. A violência obstétrica ocorre de forma constante no Brasil, seja na alta ocorrência de cesarianas desnecessárias, imputando à mulher a culpa pela impossibilidade de um parto normal, seja nas agressões durante o parto normal oferecido em hospitais e maternidades, públicos ou privados.
O conceito internacional de violência obstétrica define qualquer ato ou intervenção direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera (que deu à luz recentemente), ou ao seu bebê, praticado sem o consentimento explícito e informado da mulher e/ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências. Abusos como esses implicam em violações de direitos humanos, como o direito a integridade corporal, à autonomia, a não discriminação, à saúde e a garantia do direito aos benefícios do progresso científico e tecnológico.
Cesariana sem indicação clínica justificada, uso de soro com ocitocina sintética (hormônio) para aceleração do trabalho de parto por conveniência médica e hospitalar, exames de toque sucessivos feitos por diferentes pessoas, episiotomia (corte para aumentar o canal de passagem do bebê) e privação do contato imediato entre mãe e filho após o nascimento são apenas algumas formas da violência que uma mulher pode sofrer durante o parto.
Tais intervenções, praticadas de forma rotineira no momento do parto são consideradas, de acordo com as diretrizes da OMS (1996), como um fator de risco tanto para a mulher como para o bebê. Crenças e preconceitos a respeito da sexualidade e saúde das mulheres presentes na sociedade patriarcal contribuem com a forma como são vistas e (des)tratadas por estes profissionais.
Mas há outros tipos, diretos ou sutis, como explica a obstetriz e acoordenadora do GAMA (Grupo de Apoio à Maternidade Ativa), Ana Cristina Duarte: “impedir que a mulher seja acompanhada por alguém de sua preferência, tratar uma mulher em trabalho de parto de forma agressiva, não empática, grosseira, zombeteira, ou de qualquer forma que a faça se sentir mal pelo tratamento recebido, tratar a mulher de forma inferior, dando-lhe comandos e nomes infantilizados e diminutivos, submeter a mulher a procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos pubianos, posição ginecológica com portas abertas, submeter a mulher a mais de um exame de toque, especialmente por mais de um profissional, dar hormônios para tornar o parto mais rápido, fazer episiotomia sem consentimento”.
Agora é lei
Assegurar o contato pele a pele do recém-nascido com a mãe imediatamente após seu nascimento, colocando o bebê sobre o abdômen ou tórax da mãe de acordo com sua vontade, de bruços e cobri-lo com uma coberta seca e aquecida. Essa é uma das recomendações do Ministério da Saúde para o nascimento de bebês com ritmo respiratório normal. O texto faz parte da atualização das diretrizes para a organização da atenção integral e humanizada ao recém-nascido no Sistema Único de Saúde (SUS).
A portaria, que foi publicada no Diário Oficial da União desta quinta-feira (8), recomenda ainda que o aleitamento materno na primeira hora de vida do bebê, exceto em casos de mães HIV ou HTLV positivas. O texto propõe também que o exame físico, pesagem e vacinação do recém-nascido, entre outros procedimentos, sejam feitos apenas depois da sua primeira hora de vida.
No SUS, bebê deve ter contato pele a pele com mãe logo após nascer, e exames de rotina são postergados para depois da primeira hora de vida.
Outra proposta da portaria é quanto ao clampeamento do cordão umbilical do recém-nascido, que deve ser feito após cessadas as pulsações do recém-nascido (aproximadamente de 1 a 3 minutos), exceto em casos de mães isoimunizadas ou HIV / HTLV positivas, em que o clampeamento deve continuar sendo feito de imediato.
Ainda de acordo com a portaria, para o recém-nascido com respiração ausente ou irregular, deverá ser seguido o fluxograma do Programa de Reanimação da Sociedade Brasileira de Pediatria. O estabelecimento de saúde que mantiver profissional de enfermagem habilitado em reanimação neonatal na sala de parto deverá possuir em sua equipe, durante 24 horas, ao menos um médico que também seja capacitado.
A portaria publicada pelo Ministério da Saúde altera, ainda, os atributos do procedimento na tabela de procedimentos, medicamentos, órteses, próteses e materiais especiais do SUS. Com a mudança, o atendimento ao recém-nascido consiste na assistência por profissional capacitado, médico (preferencialmente pediatra ou neonatologista) ou profissional de enfermagem (preferencialmente enfermeiro obstetra ou neonatal), desde o período anterior ao parto, até que o recém-nascido seja encaminhado ao quarto em alojamento conjunto com sua mãe ou à unidade neonatal. Com a portaria, essa equipe de atendimento deve incluir médico residente, enfermeiro, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem.
Consulte aqui a portaria na íntegra.
Denuncie a violência obstétrica
Segundo cartilha sobre violência obstétrica publicada pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a mulher deve exigir da instituição de saúde onde foi atendida a cópia de seu prontuário médico. Esta documentação pertence à paciente, podendo ser cobrado apenas o valor referente ao custo das cópias.
A cartilha ainda indica procurar a defensoria pública como segundo passo. Independente se a gestante usou o serviço público ou privado.
Para denúncias e orientações, a recomendação é ligar para o 180 (Violência Contra a Mulher) ou para o 136 (Disque Saúde).
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