Mais paredes vêm abaixo

Você acorda invocada e muda nossas vidas, e nossa casa, de forma irreversível

por Milly Lacombe em

Você abre os olhos e avisa que não dormiu nada bem. Eu, que havia dormido como um recém-nascido, fico ligeiramente tensa porque conheço você há algumas primaveras e tenho noção do que está por vir. E, de fato, antes do café da manhã a notícia cai sobre a mesa como uma baguete de duas semanas atrás: vamos mudar de quarto. Você explica, ainda que não precisasse, porque a decisão me parece bastante tomada, que o quarto que dá para os fundos é bem menos barulhento do que esse em que dormimos, que a rua de trás não é tão caótica e frequentada por caminhões de lixo e caçambas como a da frente. Como não digo nada, até porque estou com taquicardia e tentando respirar lentamente, você, talvez acreditando que precise de mais argumentos para me dobrar, emenda avisando que não dorme há meses por causa da zona na rua e que isso não é vida, que não é nada justo e que está com uma dor de cabeça gigantesca por causa da falta de descanso adequado. Evito mencionar minha falta de ar diante da iminência da mudança e apenas balanço a cabeça concordando com tudo o que está sendo dito. Porque tenho algum conhecimento de como você doma a vida, sei que mudar de quarto não significa apenas pegar nossa caminha, nossos livrinhos e o aparelho de TV e dar três passos em direção ao outro cômodo.

E, de fato, em questão de segundos, você, já bem mais animada porque me viu aceitar a mudança contra a qual lutei em vão por meses, justifica minha taquicardia: já que vamos mudar de quarto, então podemos descascar as duas paredes e deixá-las no concreto como fizemos com a da sala. Podemos também aproveitar a vinda do pedreiro e pedir que ele tire aquele armário embutido com o qual você implica desde o dia um e, claro, contratar um pintor para deixar tudo bem bonitinho. Ah, sim, e o eletricista, porque o ambiente parece não ter todos os pontos de luz e tomadas necessários para se transformar em um quarto de dormir, e tem o técnico do ar-condicionado, porque o verão se anuncia brabo e precisaremos dessa ajuda para resfriar nossa noite. A persiana, você lembra, também terá que ser trocada. Saltitante com a ideia da mudança, você termina seu café, pega a bolsa e as dezenas de sacolinhas que você arrasta para cá e para lá todos os dias, contendo tudo aquilo que não cabe na bolsa, me dá um beijo e sai sem notar que a essa altura já estou pálida, gelada e ofegante.

Mais barulho

Como trabalho em casa, tento começar a me conformar com a ideia de que uma nova obra terá início e que eu participarei na íntegra dela. E, já que o mundo se divide entre os que amam uma obra e os que detestam, e você e eu estamos em lados opostos, tomo para mim aquela dor de cabeça que você parece ter deixado para trás. Em questão de um par de horas, você avisa que já falou com o pedreiro e com o eletricista e com o pintor e com o homem da persiana e com o do
ar-condicionado e que comprou o material necessário antes de chegar ao trabalho e que no dia seguinte eles começarão a invadir. Você fez tudo isso enquanto eu lia o jornal, o que apenas confirma minhas suspeitas de que, suficientemente motivada, você poderia dominar o mundo.

No dia seguinte, como prometido, eles vão chegando e entrando e quebrando e sujando e me solicitando para dúvidas de última hora. Para todas elas, respondo do mesmo jeito: eu não sei, eu realmente não sei, moço. E, em seguida, ligo para você, que sempre sabe. Você me pede para, de tempos em tempos, dar um pulo no quarto que está vindo abaixo para ver se está tudo caminhando conforme suas ordens. Eu vou, mas não sei avaliar, até porque não tinha entendido as ordens, então acabo ali dentro falando com eles de futebol. Saio, ligo para você e digo que tudo vai muitíssimo bem, mas à noite, quando você chega, percebo que as coisas não iam assim tão bem: colocaram massa onde não era para colocar, taparam buracos que não eram para ser tapados e instalaram tomadas em lugares errados. Você me explica tudo, eu não entendo nada, mas balanço a cabeça concordando, porque até minha ignorância tem um limite e ele está exatamente no ponto em que sei quando não posso discordar do que você está dizendo.

Amor nos escombros
A obra que ia durar três dias já passou do oitavo, eu agora trabalho com o cabelo todo duro e armado, cortesia do espesso pó que me cerca, e com a pele meio avermelhada, porque no meio da zona você lembrou do cara que lixa o taco do chão e que a presença dele se faria necessária, e o pó que sai da atividade é vermelho como o solo de Marte. Agora sou como aquelas figuras vistas correndo quando as Torres Gêmeas desabaram. Meus contratantes cobram os textos, tento dizer que estou com bloqueio criativo quando a verdade é que estou no meio de uma neblina densa e mal enxergo o teclado. Ainda assim, já não posso mais escapar porque você acredita que minha presença na casa é fundamental para o bom andamento da obra, e, além disso, me apeguei aos rapazes com os quais tomo café e como bolo na cozinha e falo da rodada e do campeonato todas as tardes. Talvez eu tenha alguma culpa pelo atraso das coisas.

À noite, você volta para casa e vai checar a obra. Vendo as paredes expostas, emociona-se. Pessoas que gostam de obra conseguem captar duas coisas que nós, os normais, não conseguimos: beleza em meio ao entulho e o dia em que tudo terá fim. Em meu mundo, obras não têm fim. Não consigo projetar o dia em que meu cabelo voltará a ser sedoso e macio e minha pele menos avermelhada. Mas consigo ver você. E você está linda toda amarrotada, com aquela leve olheira que deixa a máscara de seu rosto com uma espécie de sombra que eu adoro, e com o cabelo preso displicentemente. Enquanto você admira a obra, eu admiro você, e seu corpo e suas costas largas. E, nessa divisão fundamental que estabelecemos para nossas vidas, a gente se enxerga. Na cama, você deita sobre mim, diz que me ama e, antes que eu consiga balbuciar qualquer coisa, diz que teve uma ideia para ampliar a cozinha. Sinto a falta de ar voltando, mas estou rendida com seu corpo sobre o meu. E, francamente, nessa hora, que importância têm as paredes?

A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com

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