Sinal de força
No papel de Elza Soares no teatro, a cantora Larissa Luz relembra o resgate de suas origens e fala do processo de conexão com os próprios ciclos
Larissa Luz nasceu mulher, negra e cantora — uma de suas memórias mais marcantes de infância é do seu aniversário de 4 anos, quando passou a festa inteira em frente a uma câmera, cantando. Aos 10 anos, começou a fazer aulas de teatro e, aos 15, integrou a companhia de dança da escola. "Vi que era aquilo que eu queria, estar no palco", conta.
A baiana de Salvador entendeu logo que seu caminho era, por meio da arte, resgatar suas raízes e lutar pela representatividade negra — aos 19, ela entrou para o grupo de axé Ara Ketu, no qual ficou até 2012, motivada pelo discurso de valorização da cultura negra que a banda carregava — , mas precisou lidar, ao longo de sua jornada, com diversas questões de autoconhecimento, reconhecimento de sua identidade e aceitação. Larissa lembra de sua mãe e sua tia usando ferro de passar roupa no cabelo para que ele ficasse liso. “Eu mesma sonhava com o dia em que uma fada deixaria meu cabelo, além de liso, loiro”, conta.
As histórias de Larissa e das mulheres da sua família se cruzavam e se repetiam, assim como a de inúmeras outras meninas negras, que passam por situações assim até hoje. A cantora conta que era constantemente submetida a exigências de se encaixar em um padrão que não a contemplava. "Meu cabelo não era bom para estar ali, meu nariz não era bonito. Isso atingiu diretamente minha identidade e minha construção ancestral", relembra.
Hoje, na pele de Elza Soares no musical Elza e com três álbuns solo lançados — MunDança (2012), Território conquistado (2016) e Trovão (2019) — , Larissa enxerga que há, cada vez mais, uma conscientização sobre identidade racial. "Estamos correndo atrás de reparar danos na nossa personalidade pela ausência de representatividade."
“Estamos correndo atrás de reparar danos na nossa personalidade pela ausência de representatividade”
Larissa Luz
Para ela, poder encarnar Elza nos palcos é uma prova de que a música e a arte alcançam esse lugar de representação e que podem chegar a inúmeras pessoas de uma maneira leve e profunda. “Elza Soares é de uma força inspiradora incontestável e, ao conhecer mais profundamente sua história, percebemos como é difícil e desafiadora a vida da mulher negra”, diz.
Respeito aos ciclos
A cantora sabe que o reconhecimento de si mesma, da sua identidade e dos elementos que a compõem é um processo que passa por diversas etapas. Ser mulher, por exemplo, é uma condição visceral e que muitas vezes nos é negada. No seu caminho em busca de resgatar suas raízes e se reconectar com si própria, Larissa encontrou respostas na troca com outras mulheres. Ela passou a se abrir com as amigas sobre assuntos que rondavam o próprio corpo e ressignificou velhas crenças, como a vergonha da menstruação e a vilanização da TPM. "Tenho experimentado meu corpo como ele é e deixado tudo acontecer naturalmente. Penso no meu ciclo menstrual como algo muito relevante no meu estado físico. Sei quando começa e quando termina, quando fico mais sensível ou mais ativa. Sei, também, como meu corpo reage no momento que a menstruação vem e isso tem muita influência nos meus dias e no meu estado de espírito", conta ela, que até pouco tempo atrás usava métodos contraceptivos que não permitiam um contato mais íntimo com seu fluxo menstrual.
Hoje, aos 31 anos, a cantora tenta se observar, respeitar seu corpo e se conectar, cada vez mais, com as sensações que tem ao longo do mês. "A gente está sempre tão distante de tudo que não percebe o que há de produtivo nesses momentos. Atualmente, aproveito para me jogar na arte e experimentar outras coisas na dramaturgia ou na escrita. Na TPM, tento aproveitar essa sensibilidade. Já no período fértil, dou um gás no que precisa ser resolvido." Larissa também lembra que um dos conselhos mais importantes que ouviu nesse processo de autoconhecimento foi o de que sentir dor e chorar não são sinais de fraqueza.
Fortaleza
Faltava um estalo, porém, para que a cantora reconhecesse e aceitasse seus momentos de fragilidade. Antes de se apresentar na abertura de um show do rapper Criolo, Larissa teve um problema de voz e ficou com receio de não conseguir cantar bem. Quando o músico disse que queria uma mulher forte abrindo seu show, ela teve certeza de que não conseguiria cumprir essa expectativa. Porém, em seguida, ele falou outra coisa que ecoaria pela cabeça da baiana por muito tempo. "O Criolo me disse: 'Quem disse que você não é forte só porque está chorando? Apenas os fortes carregam o peso das lágrimas'. E é exatamente isso, a gente não deixa de ser forte por demonstrar nossas emoções", diz.
No entanto, Larissa ressalta que, dentro da realidade de uma mulher negra, existem algumas diferenças. Enquanto muitas tentam naturalizar seus corpos e reconhecer seus ciclos como fundamentais, mulheres negras ainda são colocadas em um lugar de resistência e de força. "É preciso entender que nós sentimos dores, choramos e sofremos igual. Nossos corpos não são adaptados à dor e não precisam sofrer violência."
“Para mim, uma mulher forte é aquela que olha para as mulheres ao seu redor e segura na mão de cada uma delas”
Larissa Luz
Segundo ela, é fundamental reconhecer as similaridades entre as mulheres, mas cada uma dentro de sua individualidade. Só assim seria possível, então, se fortalecer e se unir enquanto coletivo. "Quando nos juntamos e vemos que existem diversas questões em comum, conseguimos perceber a necessidade de resolver isso de alguma forma. Para mim, uma mulher forte é aquela que olha para as mulheres ao seu redor e segura na mão de cada uma delas. É aquela que não se deixa sucumbir pelas opiniões alheias e opressões do sistema. Essa é a grande força da nossa união. É o segredo para que cada uma reconheça, em si e nas outras, uma fortaleza", finaliza.
Créditos
Texto: Camila Eiroa