Hora de mudar de vida
Milly Lacombe: 'Depois de dez anos, talvez seja hora de transformar alguma coisa'
Era para ser por uma noite apenas. Esse foi o combinado. Passaríamos uma noite juntas e depois cada uma seguiria sua vida. Seria como um experimento para você ver o que sentiria indo para a cama com outra mulher.
Mas um segundo encontro aconteceu, e você então avisou que não conseguiria passar a noite inteira dormindo numa mesma cama. Explicou que estava acostumada a dormir sozinha, que era uma mulher muito grande – coisa que eu já sabia –, que se mexia muito e que, por isso, com todos os namorados e amantes antes de mim havia feito um acordo: acabada a farra, um dos dois deveria sair.
Expliquei que tinha uma enorme capacidade de compartimentar a mim mesma e que facilmente me adaptaria a um pedacinho de cama, qualquer que fosse ele, e argumentei também que ao contrário dos homens com quem você já havia se deitado – uma turma que eu agora odiava – eu era uma pessoa pequena e que poderia acabar com esse seu zigue-zague nortuno. Você foi irredutível, e explicou que não suportaria uma noite maldormida: passaria para o sofá assim que a brincadeira acabasse.
Mas durante pelo menos seis meses não houve tempo para que você saísse da cama porque quando a gente se dava conta já era dia, a brincadeira não havia terminado e ninguém tinha dormido. Só que quando finalmente voltamos a dormir – porque não há organismo que consiga sobreviver a tantas noites em claro, ou emprego que se perpetue nessas condições de abobamento e sono – você ainda assim não saiu da cama.
Você então começou a me falar sobre como tinha dificuldade para se entregar, confiar e aceitar comprometimentos sérios. Tudo ia bem entre a gente, mas não havia da sua parte nenhuma intenção de exclusividade. Você disse que não via o mundo desse jeito careta, nunca tinha sonhado em entrar na igreja vestida de branco para ser entregue por seu pai a um outro homem e, mesmo agora, apaixonada por uma mulher, não via sentido em se fechar em um relacionamento. Havia, você argumentava, muitas outras pessoas com as quais talvez ainda gostaria de se deitar. Tinha apenas 27 anos, você dizia, e não conseguia começar a pensar na possibilidade de terminar comigo suas experimentações. E, afinal, não seria essa uma das grandes vantagens de um relacionamento homossexual?, você ponderava. Justamente a capacidade de quebrar convenções e tradições em nome de liberdade e honestidade e de uma verdade tão cara e rara?
Eu, fingindo ser uma mulher madura e bem resolvida, concordava com tudo. Era isso mesmo, eu dizia: seríamos um casal aberto à vida e ao amor e a novas paixões. Era exatamente isso o que eu buscava e desejava e estava muito feliz por ter encontrado alguém que via a vida e o mundo com a mesma lente revolucionária que eu. Abaixo a caretice, eu bradava. Que grande alegria e sorte, eu dizia, poder viver um relacionamento moderno e transgressor ao seu lado.
Eu, uma mentirosa
Mas a verdade é que não era absolutamente isso o que eu queria. O que eu queria mesmo era baixar um decreto-lei que eliminasse da terra seus ex-amantes, castrasse candidatos futuros – homens ou mulheres – e obrigasse você a passar o resto de seus dias ao meu lado. Era exatamente isso o que o animal que me habitava gostaria de fazer. Acho que se você pudesse ter alguma noção da caretice que me habitava e da falta de lucidez que me inundava teria começado a correr e nunca mais parado.
Mas por sorte consegui me manter sã e continuar a mentir sobre minha maturidade; a diferença de dez anos entre a gente exigia que fosse assim. Era, entretanto, apenas uma questão de tempo até que você sacasse a pessoa inadequada e incapaz com quem estava se deitando. Quando lembrava disso, conseguia até ficar feliz imaginando que muito em breve nosso relacionamento estaria terminado, invadido por outros amantes e desejos.
Pensar assim me deixava de certa forma aliviada; conseguir perpetuar a imagem de mulher forte e bem-sucedida em sua mente não era uma ideia ruim. Porque, se passássemos mais tempo juntas, você inevitavelmente descobriria que eu era uma pessoa que não saía de casa, que detestava aglomerações (exceto aquelas que envolviam o Corinthians), abominava calor, samba, praia, megashows tipo Lollapalooza e dormir tarde. Uma quase quarentona que não sabia fazer pagamento de contas pela internet, lembrar de senhas ou aplicar dinheiro e que, por isso, gastava tudo o que havia, até porque como jornalista essa não era uma tarefa para muitos dias. Alguém que sentia profundo tédio quando escutava as palavras cartório, reconhecimento de firma, autenticação, junta comercial, e que, por isso, fingia que essas coisas não existiam. Um ser humano cujas especialidades se resumiam a fazer baliza, adivinhar a hora e lavar a louça do jantar. Uma esquisita que se sentia feliz entocada em casa durante um fim de semana de sol lendo Eça ou Machado ou Proust ou Doistoiévski, e que preferia dias frios e chuvosos a quentes e de sol. Também não demoraria para que você percebesse que eu era aquela que, numa festa, ficava involuntariamente isolada, aquela que não sabia dançar ou cantar; alguém, portanto, com a ginga social de uma criança de 4 anos. Então, antes que tudo isso viesse à tona, a chegada do novo amante salvaria minha imagem – embora fosse, ao mesmo tempo, me atirar às trevas.
Mas os meses viraram anos e os anos viraram uma década e você nunca mais saiu da minha cama. Desde aquela primeira noite nada mudou na nossa paixão, a não ser a doentia voracidade sexual que nos transformava em vampiros – o que foi bom para que pudéssemos manter empregos e algumas amizades. Aos poucos, minha máscara foi caindo e você não pareceu se importar. Nunca tratamos de exclusividade, mas esse outro amante tampouco surgiu. Construímos algumas casas, arrecadamos duas cachorras, fomos morar fora do país. Pessoas importantes partiram, outras chegaram, e, diante de tanta dor e de tanto prazer, nosso relacionamento ganhou muitos músculos. Até hoje a gente diz que se ama, e faz amor sem hora marcada, e faz nheco antes de se levantar, e se protege do mundo dançando na sala.
Estava pensando em tudo isso na noite passada, quando uma viagem de trabalho afastou você de mim por alguns dias. Que sentido tem a casa sem você? Ou a vida sem você? Ou as flores sem você? Ou eu sem você? E então um troço doido me passou pela cabeça. É que talvez seja hora de mudar algumas coisas, de cruzar uma outra fronteira, de dançar um pouco mais na cara do preconceito. Por isso eu queria perguntar: você quer casar comigo?
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com